A visão de Anaísa Gordino:Literatura, Leitura e Identidade: O papel da língua portuguesa na formação pessoal e cultural

Anaísa Gordino é natural de Lisboa, mas cedo começou a exercer funções no estrangeiro, quer ao serviço do Instituto Camões, quer de outras instituições. A sua carreira profissional tem sido dedicada ao ensino do português e à divulgação cultural, com foco na promoção da cultura portuguesa e no estabelecimento de relações interculturais nos diferentes postos onde exerceu funções. Ao longo da sua carreira, trabalhou em países tão diversos como Bélgica, Botsuana, Namíbia, Venezuela, Timor-Leste, ou Bulgária, antes de assumir funções em Toronto, em 2024. Anaísa Gordino é, agora, Leitora do Instituto Camões na Universidade de Toronto e Coordenadora do Camões – Centro de Língua Portuguesa em Toronto.
Milénio Stadium: De que forma a literatura contribui para a formação da personalidade e da consciência crítica dos indivíduos?
Anaísa Gordino: A literatura permite-nos entrar em contacto com diferentes realidades, culturas e experiências humanas. Nesse sentido, a literatura é uma poderosa ferramenta de construção pessoal e social. A literatura, através do “encontro” com personagens e histórias/estórias diversas, leva-nos a refletir sobre questões comuns e transversais, mas também sobre vivências únicas e específicas a cada ser humano. Esse cruzamento de experiências, entre o universal e o singular, permite construir uma parte significativa da personalidade de cada indivíduo, sendo esta construção algo que se faz ao longo da vida – e todos nós temos memórias de livros que nos marcaram, em diferentes momentos, e que alteraram as nossas perceções sobre nós próprios e sobre o mundo que nos rodeia.
Embora seja uma ideia que ouvimos frequentemente, é, sem dúvida, verdade que a literatura abre janelas sobre diferentes modos de ver o mundo, ao mesmo tempo que estimula a imaginação, expande o nosso conhecimento de uma língua e nos faz ir além do seu sentido literal, para descobrir significados múltiplos e novos.
Tudo isto fomenta uma visão mais ampla e questionadora do mundo, contribuindo de modo decisivo para a formação de uma identidade pessoal e social mais consciente e informada, bem como de um espírito crítico, que, usando uma expressão coloquial, não toma simplesmente as palavras “ao pé da letra”, mas desvenda os múltiplos significados e intenções com que elas podem ser utilizadas – para deleitar, comover, persuadir, mas, também, manipular. Esse espírito crítico é um instrumento fundamental para navegar o mundo em que vivemos e a multiplicidade de discursos com que nos confrontamos diariamente.
MS: É possível o desenvolvimento cultural de uma comunidade sem hábitos de leitura? Que consequências pode isso trazer?

AG: Ao longo da história do ser humano, sabemos que diferentes comunidades tiveram necessidade de deixar para as gerações futuras as marcas e a memória da sua existência e do seu património comum, expressos através de várias modalidades – gravuras e registos pictográficos, narrativas e tradições orais, ou registos escritos, surgindo a literatura nesse continuum. Essas diferentes narrativas foram informando o conhecimento, inspirando a produção cultural, mas também levando ao questionamento, por parte de gerações futuras, sobre o seu lugar no mundo. Uma comunidade que não cultive hábitos de leitura corre o risco de se desligar da sua história, da sua herança cultural e de perder a capacidade de interpretar o mundo à sua volta, ou, ainda, a capacidade de se renovar criativamente.
No contexto das comunidades portuguesas pelo mundo, incluindo no Canadá, estimular a leitura, nomeadamente a leitura em português, é importante para manter as ligações com a história e a cultura portuguesas, desenvolver o conhecimento e fluência em língua portuguesa, assim como compreender a sociedade plural em que se inserem. Sem isso, poderemos acabar por assistir a uma assimilação cultural pouco crítica, onde a identidade luso-canadiana se dilua em vez de enriquecer o tecido multicultural canadiano.
O desenvolvimento cultural, em qualquer tipo de comunidade ou ponto do globo, exige leitores ativos, capazes de compreender e problematizar a sua história, valorizar a sua diversidade e contribuir com novas narrativas para a sociedade em que estão inseridos. A leitura – não só da literatura, mas de todo o tipo de textos – é um meio fundamental para a construção de conhecimento, a preservação da memória coletiva e como estímulo ao pensamento autónomo. A ausência de hábitos de leitura pode levar a um empobrecimento cultural, bem como à desinformação e a uma maior fragilidade no exercício do espírito crítico. Nesse sentido, incentivar a leitura é promover o desenvolvimento cultural e social de uma comunidade como um todo e, também, dos seus indivíduos, capacitando-os para uma participação ativa e consciente enquanto cidadãos na vida cívica e cultural.
MS: Como podemos promover a leitura em língua portuguesa e que papel devem ter instituições como o Instituto Camões e os próprios escritores na valorização da lusofonia e das vivências das suas comunidades?
AG: Promover a leitura em língua portuguesa passa, antes de mais, por criar contextos de acesso e envolvimento com obras literárias de diferentes tipos e para diferentes públicos e faixas etárias, adaptadas às realidades de cada comunidade – sem deixar de promover o conhecimento de grandes nomes da literatura em língua portuguesa, mas indo além dos referentes tradicionais ou do cânone “clássico” e proporcionando o acesso a novas obras e a novos autores portugueses e do mundo lusófono, incluindo os autores das diferentes diásporas.
Naturalmente que, para isso, é preciso fomentar e estimular o desenvolvimento de competências em língua portuguesa. O Instituto Camões, através da rede de Leitorados, dos Centros de Língua Portuguesa, e do apoio às redes de Ensino de Português no Estrangeiro, tem um papel vital no apoio à educação em língua portuguesa, à formação de leitores e à organização de eventos culturais que aproximem a literatura e os escritores da comunidade.
Além disso, e colocando o foco novamente na realidade do Canadá, é fundamental dar visibilidade aos escritores luso-canadianos, que expressam as vivências únicas e, simultaneamente, múltiplas, da emigração/imigração e a sua identidade híbrida. Esses autores, ao escrever em português, ou sobre a sua experiência do que é ser português no Canadá, contribuem para a valorização da lusofonia como espaço plural e dinâmico.
Em termos muito concretos, continuar a desenvolver parcerias com escolas, universidades, bibliotecas, associações e centros culturais, diferentes media canadianos e participar em eventos culturais como festivais literários, lançamentos de livros, promovendo encontros com escritores, contribuirá para ampliar esse contacto e para a valorização da lusofonia e das vivências de diferentes comunidades. Pelo que me foi dado constatar desde que cheguei ao Canadá, existe uma boa base no que diz respeito à promoção da língua portuguesa e da literatura de autores portugueses e luso-canadianos e há que continuar a aprofundar esse trabalho.
MS: Que estratégias educativas e sociais podem ser implementadas para cultivar o gosto pela leitura desde a infância até à idade adulta?
AG: Julgo que é essencial integrar o livro e a atividade da leitura no quotidiano desde cedo e ao longo da vida, com acesso fácil a bibliotecas – físicas e digitais – atividades de leitura em voz alta em casa e na escola, clubes de leitura, encontros com autores e participação em eventos literários, como referido antes.
A leitura deve ser apresentada como uma atividade de fruição estética e, muitas vezes, nas gerações mais jovens, também com uma componente lúdica e criativa, não apenas como uma obrigação escolar sujeita a uma avaliação formal. Iniciativas como bibliotecas comunitárias, atividades de mediação de leitura, contadores de histórias, programas de leitura bilingue, oficinas de escrita criativa, ou clubes de leitura – quer constituídos por indivíduos da mesma faixa etária, quer intergeracionais – podem estimular o interesse pela leitura desde a infância. Várias destas iniciativas já acontecem em Toronto e há que continuar a apostar no seu alargamento, estando o Instituto Camões disponível para apoiar estes projetos. Outro elemento para captar o interesse das gerações mais jovens, nomeadamente na comunidade luso-canadiana, pode também passar pela produção e promoção de livros infantis e juvenis com temas da imigração e da cultura portuguesa, de forma a despertar o gosto e a curiosidade pela sua identidade cultural.
Além disso, o incentivo à criação de conteúdos digitais em português sobre diferentes textos pode reforçar o hábito de leitura ao longo da vida e criar uma dinâmica de partilha de experiências de leitura em diferentes grupos sociais e etários. Há dias, numa cerimónia de entrega de prémios a jovens luso-canadianos da Pno Consulado-Geral de Portugal em Toronto, uma jovem salientava que era preciso criar mais conteúdos sobre a cultura portuguesa nas redes sociais, como Tiktok ou Instagram, ou no Youtube. É um facto que, atualmente, muitos fenómenos culturais, incluindo no que toca à leitura, passam por estas plataformas. Procurar usar estes meios, sem cair no risco de uma simplificação excessiva de um texto literário ou da experiência da leitura é um dos desafios que devemos abraçar, tornando também os jovens como criadores desses conteúdos, algo que, frequentemente, eles conseguem fazer com grande destreza e entusiasmo.
MS: Que mensagem aos nossos leitores deixaria sobre a importância da preservação da língua e da cultura portuguesa?
AG: A mensagem que deixaria, sobretudo para os mais jovens, é que língua é mais do que um conjunto de regras gramaticais, de vocabulário ou de uma determinada forma de pronunciar sons: é um meio de comunicação para chegarmos uns aos outros, é a expressão viva da nossa identidade e da riqueza cultural que cada indivíduo, com a sua história pessoal, transporta em si.
Mais do que preservar a língua e a cultura portuguesas, diria que o nosso papel é continuar a construir a língua portuguesa e a enriquecer a cultura portuguesa. As línguas e as culturas são seres dinâmicos e vivos, que não se definem ou terminam num momento específico, nem existem em compartimentos estanques, seja no espaço ou no tempo. Estão, sim, em permanente mudança, em permanente atualização – e todos nós fazemos parte desse processo de constante (re)construir e (re)imaginar o que é a língua portuguesa e o que é ser português.
A língua e a cultura portuguesas não se limitam ou confinam a expressões ou espaços específicos, elas existem tanto na poesia de Fernando Pessoa, como numa canção de Zeca Afonso, ou, ainda, no calão dos surfistas da Nazaré; elas estão patentes em museus e galerias, e também nas danças tradicionais das diferentes regiões dos nossos avós. A língua portuguesa continua a integrar novos vocábulos, influenciados quer por línguas africanas, quer pelas séries americanas, e é usada na literatura, em artigos de imprensa, mas também para enviar mensagens de telemóvel… Como dizia Saramago, não há uma língua portuguesa, há línguas em português – que saibamos todos valorizar essa pluralidade, que constitui, afinal, um aspeto essencial da língua e da cultura portuguesas.
RMA/MS
Redes Sociais - Comentários