A reforma da Lei da Fiança e os direitos fundamentais

Nos últimos meses, o debate em torno das reformas ao sistema de justiça criminal no Canadá tem ganhado intensidade, sobretudo no que diz respeito às alterações às regras de fiança e às disposições de “reverse onus”, que transferem para o arguido o ónus de provar que deve ser libertado antes do julgamento. O governo federal defende que estas medidas visam reforçar a segurança pública e responder à perceção de aumento da criminalidade violenta, mas várias organizações de direitos civis alertam para os riscos de injustiça e desigualdade que podem advir destas mudanças.
Entre as vozes mais críticas está a Canadian Civil Liberties Association (CCLA), que tem acompanhado de perto o avanço legislativo e os seus potenciais impactos no sistema prisional e nas comunidades mais vulneráveis. Em entrevista ao Milénio Stadium, Shakir Rahim, diretor do Programa de Justiça Criminal da CCLA, explica porque considera que estas reformas podem violar princípios constitucionais, agravar a sobrelotação das prisões provinciais e afetar desproporcionalmente pessoas com baixos rendimentos e minorias raciais. Rahim defende que, em vez de medidas punitivas, o Canadá deveria investir em soluções baseadas na reabilitação, no apoio social e na prevenção. A sua perspetiva lança um olhar crítico e fundamentado sobre o futuro da justiça criminal no país.
Milénio Stadium: As novas disposições de “reverse onus” alteram substancialmente o equilíbrio entre segurança pública e direitos individuais. Considera que estas mudanças violam princípios fundamentais da Carta Canadiana dos Direitos e Liberdades?

Shakir Rahim: Estamos preocupados com a coerência destas alterações, e é provável que algumas delas não o sejam. A razão é que o Supremo Tribunal do Canadá já reconheceu que uma disposição de “reverse onus” (inversão do ónus da prova) só se justifica em circunstâncias restritas e bem delimitadas. Este projeto de lei, no entanto, alarga consideravelmente a lista de crimes em que a inversão do ónus se pode aplicar. Não acreditamos que isso cumpra o critério de ser uma medida limitada e direcionada.
MS: Há o risco de que as novas regras de fiança aumentem o encarceramento preventivo de pessoas de baixos rendimentos ou de minorias raciais? Que consequências sociais antevê a CCLA?
SR: O que sabemos é que, quando alguém tenta obter liberdade sob fiança, tem de demonstrar certos fatores, por exemplo, laços com a comunidade, um ambiente estável para o qual possa regressar, e assim por diante. Quando as regras de fiança se tornam mais rígidas, o padrão exigido para ser libertado é mais elevado. Isso significa que pessoas que não dispõem dos mesmos recursos ou ligações comunitárias, como aquelas com rendimentos mais altos, serão mais prejudicadas por regras mais duras, já que terão menos probabilidade de ser libertadas até ao julgamento.
Outro problema é que sabemos que as condições nas prisões provinciais estão em crise: há sobrelotação, falta de cuidados médicos e dificuldades de acesso a advogados. Acreditamos que estas condições terão um impacto especialmente negativo sobre pessoas com baixos rendimentos e racializadas.
MS: O Governo argumenta que estas reformas são uma resposta à criminalidade crescente e à preocupação pública. Como avalia a CCLA os dados apresentados para justificar estas medidas?
SR: Em primeiro lugar, reconhecemos plenamente que todos têm direito a sentir-se seguros nas suas casas e comunidades. A questão é saber se este tipo de reformas aumenta realmente a segurança pública. Nenhum governo recolhe dados sobre quantas pessoas alegadamente reincidem enquanto estão em liberdade sob fiança. Isso dificulta a avaliação destas medidas, porque não há forma de medir se as alterações introduzidas há três anos, também com disposições de “reverse onus”, foram eficazes.
Sabemos também que muitos indicadores apontam para uma diminuição da criminalidade. Em Toronto, por exemplo, a polícia anunciou no início deste ano que o roubo de automóveis diminuiu 39%, as invasões de domicílios 42% e os tiroteios 46%. Quando ouvimos a própria polícia afirmar que o crime está a diminuir de forma significativa, isso leva-nos a concluir que a questão da fiança não foi, nem é, a causa de qualquer aumento percebido na criminalidade.
MS: A lei prevê penas consecutivas e a eliminação da prisão domiciliária em certos crimes. Isto poderá comprometer o princípio de proporcionalidade das penas?
SR: Sim, temos preocupações. A diferença entre uma pena consecutiva e uma pena simultânea (concorrente) é que, quando alguém é acusado de vários crimes resultantes do mesmo incidente, a questão é saber se as condenações e respetivas penas se somam entre si, por exemplo, cinco mais cinco mais cinco mais dois anos, ou se o juiz pode avaliar o caso globalmente e determinar qual a duração total mais adequada.
Atualmente, os juízes têm essa capacidade de decisão, podem escolher se a pena deve ser consecutiva ou simultânea. Este projeto de lei, porém, retira aos juízes essa faculdade em determinados crimes. Assim, por exemplo, alguém que demonstre fortes possibilidades de reabilitação, que tenha mudado de vida até à altura da sentença, ou que estivesse a atravessar problemas graves de saúde mental no momento dos crimes, poderia beneficiar de uma pena simultânea, mas o juiz deixará de poder aplicar essa opção.
A eliminação das sentenças condicionais levanta preocupações semelhantes. Estas penas podem ser bastante rigorosas, equivalentes a prisão domiciliária 24 horas por dia, com tornozeleira eletrónica e várias restrições —, portanto não são uma “pena leve”. Dadas as condições atuais das prisões provinciais, consideramos que esta deveria continuar a ser uma opção disponível, não em todos os casos, mas quando o juiz a considere apropriada.
MS: Que alternativas a CCLA propõe para reforçar a segurança pública sem comprometer os direitos fundamentais dos acusados?
SR: Existem várias medidas que podem ser implementadas. Sabemos que muitas pessoas que entram e saem do sistema de justiça criminal enfrentam graves problemas pessoais, falta de habitação, insegurança alimentar ou dependências. Para lidar com esses casos, é necessário oferecer serviços intensivos de apoio, que ajudem a quebrar o ciclo de reincidência.
Há provas de que isto funciona. Em Toronto, por exemplo, existe uma iniciativa de habitação apoiada chamada “Dun House”, que oferece casa e apoio psicológico. Esta abordagem é mais barata do que encarcerar alguém durante anos e tem permitido que pessoas reincidentes deixem de cometer crimes.
Outra medida seria reforçar o sistema de fiança sem recorrer a leis mais repressivas. Por exemplo, poderia haver investimento em “bail beds”, alojamentos temporários para pessoas libertadas sob fiança sem morada fixa. Isso facilita a vigilância e o acompanhamento. Existem também programas de verificação e supervisão de fiança, em que organizações comunitárias acompanham os libertados para garantir que cumprem as condições impostas. Estas iniciativas precisam de mais financiamento e apoio, e melhorariam a segurança pública.
MS: De que forma a associação pretende acompanhar e contestar judicialmente estas reformas, caso sejam aprovadas e implementadas?
SR: Há várias formas de acompanhar a situação. Prestamos atenção à percentagem de pessoas detidas em prisões provinciais sem fiança, atualmente, cerca de 80% das pessoas nas prisões de Ontário estão nessa condição, um número que aumentou muito nos últimos anos. Continuaremos a monitorizar essa estatística para avaliar o impacto na acessibilidade à fiança.
Quanto à nossa resposta, já testemunhámos no Parlamento, transmitimos as nossas posições diretamente ao Ministro da Justiça e a outros responsáveis. À medida que o projeto de lei avança no processo parlamentar, continuaremos a intervir e a reunir com legisladores. Por fim, dependendo do texto que for aprovado, ponderaremos avançar com uma contestação constitucional, caso entendamos que a lei viola o direito garantido pela Carta a não ser negada fiança razoável.
MB/MS







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