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“A presunção de inocência não deve ser subestimada nem enfraquecida” – Melissa Azevedo

Photo: @copyright

O Governo Federal do Canadá avança com uma das reformas mais significativas das últimas décadas no sistema de justiça criminal. Através da proposta Bill C-14, pretende endurecer as regras de liberdade sob fiança e agravar as penas para crimes violentos e reincidentes, justificando as medidas como resposta ao aumento da perceção pública de insegurança. Contudo, juristas, organizações de direitos civis e advogados de defesa alertam para as implicações constitucionais e sociais destas alterações, nomeadamente a possibilidade de erosão da presunção de inocência, princípio fundamental da Carta Canadiana dos Direitos e Liberdades.

Para Melissa Azevedo, que exerce exclusivamente a advocacia criminal há quase duas décadas e é membro fundadora da Heller Hunter Azevedo, escritório de advocacia de Toronto, o risco está em alargar demasiado a “rede de detenção”, afetando não apenas reincidentes violentos, mas também pessoas com perturbações mentais, dependências ou em situação de vulnerabilidade social. Nesta entrevista, Melissa Azevedo sublinha que a detenção não resolve os problemas estruturais que estão na origem de muitos crimes, lembrando que o encarceramento excessivo pode agravar a exclusão e sobrecarregar ainda mais um sistema prisional já em colapso.

Azevedo defende que a segurança pública deve ser equilibrada com a proteção dos direitos individuais e com investimentos em prevenção, habitação e reabilitação. Penas mais duras, afirma, raramente se traduzem em maior segurança, mas sim em prisões sobrelotadas, tribunais congestionados e vidas destruídas antes mesmo de um julgamento.

Nesta entrevista, a advogada analisa os efeitos jurídicos e humanos das reformas e lança uma reflexão sobre o que está realmente em causa: o futuro da justiça no Canadá e o respeito pelos princípios que a sustentam.

Milénio Stadium: As reformas enfatizam a “detenção como ponto de partida” em certos casos. Considera que isto representa uma erosão do princípio da presunção de inocência?

Melissa Azevedo. Créditos: DR

Melissa Azevedo: A ideia de “detenção como ponto de partida” visa responder à preocupação pública relativamente a reincidentes violentos. Trata-se, em geral, de pessoas com longos antecedentes criminais por violência, que já passaram grande parte das suas vidas presas e que estão sujeitas a proibições de posse de armas. Nestes casos específicos, a liberdade sob fiança é regularmente recusada.

Os indivíduos sem antecedentes criminais, acusados de crimes graves ou violentos, quando conseguem ser libertados, já ficam normalmente sujeitos às condições de liberdade mais restritivas, que incluem prisão domiciliária (confinamento em casa 24 horas por dia), supervisão por várias pessoas aprovadas pelo tribunal e monitorização através de GPS. A realidade é que o público raramente ouve falar dos arguidos em liberdade provisória que não voltam a cometer crimes e que cumprem rigorosamente as suas condições de libertação.

O risco das disposições propostas na reforma da fiança é o de alargar demasiado a rede de “detenção”, abrangendo infratores que repetidamente cometem crimes de baixo nível e não violentos, frequentemente provocados por dependência de substâncias e problemas de saúde mental não tratados, o que acabará por afetar de forma desproporcionada grupos já desfavorecidos. A detenção não resolverá estas causas subjacentes, que permanecerão quando essas pessoas regressarem à comunidade.

Embora a preocupação pública com reincidentes violentos seja compreensível e deva ser uma prioridade comunitária, estes casos são exceções, e não a norma, entre os arguidos libertados sob fiança. Para muitos acusados que poderão ser apanhados pela nova rede mais ampla de “detenção” – reincidentes de baixo nível e não violentos com problemas de saúde mental ou de dependência, bem como pessoas que antes levavam uma vida cumpridora da lei e agora enfrentam acusações abrangidas pela reforma – conciliar o princípio da “detenção como ponto de partida” com o direito protegido pela Carta Canadiana dos Direitos e Liberdades (secção 11(d)) de que “todas as pessoas acusadas de um crime são presumidas inocentes” será uma tarefa difícil. A presunção de inocência não deve ser subestimada nem enfraquecida. Sem uma possibilidade razoável de libertação pré-julgamento, pessoas inocentes arriscam perder a liberdade, as suas famílias e os seus meios de subsistência enquanto aguardam uma resolução ou julgamento.

MS: Penas consecutivas mais severas e o fim da prisão domiciliária para certos crimes poderão aumentar a pressão sobre os estabelecimentos prisionais. O sistema prisional está preparado para isso?

MA: Atualmente, os estabelecimentos prisionais estão severamente sobrelotados. Essas condições levam frequentemente a uma redução do tempo de prisão efetiva quando os arguidos são finalmente condenados. As instituições são concebidas para albergar duas pessoas por cela, mas é cada vez mais comum haver três indivíduos em cada cela.

A realidade de qualquer reforma da fiança que amplie excessivamente a rede de “detenção” ou elimine a possibilidade de prisão domiciliária para determinados crimes é que cria uma pressão acrescida sobre os tribunais, o sistema de fianças e as infraestruturas de detenção. Isso conduzirá a um aumento da sobrelotação com pessoas que ainda são presumidas inocentes e aguardam audiências de fiança ou julgamento, além daqueles que poderiam cumprir com sucesso uma pena condicional (prisão domiciliária) na comunidade. Estas pressões implicarão inevitavelmente a necessidade de construir mais instituições e contratar mais pessoal, o que terá custos adicionais para o público.

Recursos escassos deveriam ser prioritariamente direcionados para lidar com o menor número de reincidentes violentos graves, em vez de serem usados para acomodar a maioria dos infratores não violentos e de menor gravidade.

MS: O governo argumenta que estas medidas são necessárias para proteger o público. Há evidência jurídica ou empírica de que penas mais severas dissuadem o crime de forma mais eficaz do que a prevenção e a reabilitação?

MA: • É necessário equilíbrio entre proteger a segurança pública e abordar as causas subjacentes do crime. A detenção não resolve problemas de saúde mental, dependência, sem-abrigo ou pobreza, que permanecem quando os indivíduos regressam à comunidade.

Ignorar estas causas e confiar apenas na prisão como solução cria um círculo vicioso dentro do sistema de justiça, uma “porta giratória” para os mesmos indivíduos. Estas situações sobrecarregam ainda mais os já escassos recursos do sistema.

Quanto à questão de saber se penas mais severas dissuadem o crime de forma mais eficaz do que a prevenção e a reabilitação… se há alguma evidência, ela é contrária a isso.

MS: Como é que estas reformas poderão afetar os processos judiciais em termos de duração, custos e volume de casos?

MA: • As alterações propostas abordam áreas que já são rotineiramente consideradas durante audiências de fiança e de sentença.

As reformas correm o risco de desviar os já escassos recursos do sistema de justiça criminal dos casos mais graves.

As novas disposições sobre fiança levarão a um aumento de audiências contestadas.

Isto criará inevitavelmente um problema circular – mais audiências contestadas e poucos recursos resultarão em mais pessoas detidas a aguardar audiências, gerando atrasos e maiores tempos de espera para marcar julgamentos. Se a “detenção” se tornar o ponto de partida, indivíduos presumidos inocentes permanecerão presos durante períodos mais longos enquanto aguardam julgamento.

A falta de recursos para lidar com esta situação fará com que casos mais graves e violentos compitam com casos menos sérios pelo tempo e atenção dos tribunais.

Tudo isto agravará a sobrelotação das prisões e poderá levar à necessidade de construir mais instituições, sem resolver as causas profundas da criminalidade.

MB/MS

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