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“A luta pela liberdade nunca está encerrada” – Professor João Cancela

liberdade - milenio stadium

 

Emigração é, por definição, “o ato ou efeito de emigrar”, um “conjunto de pessoas que deixa o seu país ou a sua região para se estabelecerem noutro” – mas para os milhões de pessoas que tomam a grande e corajosa decisão de dizer adeus ao país que os viu nascer, esta descrição torna-se, compreensivelmente, demasiado vazia. Vazia, sobretudo, de sentimento.

E poder sentir, falar, pensar, ser, viver… era tudo o que o povo português pedia durante os 41 anos que viveu às ordens de um regime político ditatorial, conservador, autoritário, repressivo e de inspiração fascista – e conseguiu-o graças à bravura das forças militares, que para sempre mudaram a história do país no dia 25 de abril de 1974.

Nos últimos anos 20 anos do Estado Novo – que sempre condicionou a saída do país, numa tentativa não só de impedir a saída a mão de obra barata como também de soldados necessários para a guerra nas colónias -, mais de 1,6 milhões de pessoas emigraram legal e ilegalmente, espalhando-se por diversos países, sendo os Estados Unidos, França e Alemanha os principais destinos. Na bagagem levavam a esperança de uma vida melhor – ou melhor, de uma vida. Na sua verdadeira essência e definição.

João Cancela, Doutorado em Ciência Política na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH‑NOVA) e Professor Auxiliar na mesma instituição, tem sido parte integrante de equipas de diferentes projetos de investigação nacionais e internacionais, como é exemplo o projeto Varieties of Democracy (Universidade de Gotemburgo e Universidade de Notre Dame), pertencendo à equipa do Centro Regional da Europa do Sul, sediado na FCSH‑UNL (coordenação de Tiago Fernandes). Numa altura em que nos aproximamos da data de celebração da conquista de liberdade em Portugal, contámos com o contributo do Professor para nos ajudar a entender melhor todo este processo de procura e conquista de um bem que, para muitos, hoje se julga adquirido – mesmo que tenhamos provas recentes do contrário.

Prof João CancelaMilénio Stadium: Foram muitos os portugueses que abandonaram o seu país antes do 25 de Abril – Portugal sentiu nos anos 50/60 uma das maiores vagas de emigração. O que é que procuravam estas pessoas?
Professor João Cancela: Traçar uma generalização sobre o comportamento de um número tão grande de pessoas é sempre arriscado, mas posso apontar três factores. A principal motivação, de forma destacada, foi económica: Portugal era um país muito pobre em comparação com os países europeus e da América do Norte e esses destinos apresentavam condições de desenvolvimento muito mais apelativas, mesmo para quem exercia trabalhos pouco diferenciados. Mesmo que munidos de pouca informação, muitos resolveram arriscar com vista a poder ter uma vida melhor. Uma segunda motivação, não totalmente desligada da primeira, terá sido a intensificação da guerra colonial e da mobilização militar que ela implicou. Por fim, embora num número mais reduzido de casos, há que referir também a situação dos exilados políticos que se opunham ao regime e foram forçados a sair para evitarem a repressão do regime.

MS: Estaria também a pressão provocada pela guerra colonial na base dessa decisão? O desejo destas pessoas em poderem ter, no mínimo, escolha?
PJC: Tal como disse na resposta anterior, sim. A guerra implicava não só riscos evidentes de segurança para quem fosse mobilizado como potenciais perdas económicas por comparação com o trabalho no exterior. De resto, o desenvolvimento da guerra coincidiu com uma intensificação do controlo sobre os movimentos migratórios dos portugueses, o que implicou que muitos se tenham visto na circunstância de emigrar “a salto”, de forma clandestina.

MS: Um pouco por todo o mundo existiam grupos de emigrantes portugueses que tentavam denunciar o regime totalitário e falta de liberdade que se vivia em Portugal – que impacto tiveram e de que forma contribuíram, eles próprios, para o desgaste do Estado Novo?
PJC: Os residentes no estrangeiro que se opunham ao Estado Novo contribuíram para o desgaste do regime a vários títulos: financiando e organizando parte das actividades da oposição em Portugal, denunciando o regime junto da imprensa e da opinião pública dos países onde viviam, e procurando mobilizar politicamente os recém-chegados.

MS: O conceito de liberdade foi sofrendo claras alterações ao longo dos tempos – particularmente no período de pré e pós-democracia. Quais são, no seu entender, as principais diferenças entre o conceito de liberdade antes e após o 25 de Abril e a forma como a encaramos hoje?
PJC: Um dos aspectos mais impressionantes em alguns dos materiais jornalísticos e documentais recolhidos no decurso da revolução prende-se com as carências económicas de uma fatia considerável da população, por um lado, e com as reivindicações que essas pessoas verbalizavam, que se prendiam não apenas com a liberdade política mas com aspectos materiais. Ainda hoje, quando os portugueses são inquiridos sobre o que consideram que a democracia implica, percebemos que para muitos a democracia contempla também uma dimensão de desenvolvimento e de garantia de um mínimo de subsistência. Nesse sentido, a liberdade que muitos portugueses professam não é apenas a liberdade de escolher líderes e programas políticos, mas uma noção mais alargada que pressupõe que se dispõe de recursos básicos. A essas duas componentes da liberdade – política e económica – juntou-se nas últimas décadas uma terceira relacionada com as dimensões de expressão individual, nomeadamente no que toca à possibilidade de exprimir e viver de forma identidade sexual e de género, matérias em que houve um progresso assinalável em Portugal, mesmo que ainda longe de concluído.

MS: Podemos concluir que, de facto, a liberdade não é (nem pode ou deve ser) um conceito estanque, mas sim em constante construção?
PJC: Conceitos como liberdade, mas também cidadania e democracia estão sujeitos a expansão e alargamento, sim. Basta ver que experiências que foram radicalmente pioneiras no desenvolvimento da liberdade e da democracia como a dos Atenienses por volta de 500 aC não passariam hoje no nosso crivo por contemplarem a escravatura e excluírem em grande medida as mulheres. A construção do nosso entendimento de liberdade evolui e é moldada e inspirada por conflitos e reivindicações que extravasam a nossa geração e as nossas fronteiras.

MS: Quase 50 anos depois… a luta pela liberdade continua? Que tipo de liberdade podemos esperar no futuro – e será que a mesma responderá aos problemas que enfrentamos atualmente?
PJC: Parece claro que a luta pela liberdade nunca está encerrada. Neste momento, podemos pensar nas alterações climáticas como uma ameaça clara às liberdades individuais e colectivas – à medida que mais partes do mundo se forem tornando inóspitas ou mesmo inabitáveis devido à seca ou a desastres naturais reiterados isso implicará riscos tremendos para a subsistência de um número muito substancial de pessoas. Tal já está a provocar, de resto, um ímpeto para movimentos demográficos para fora dessas zonas, o que pode conduzir à intensificação de atritos e conflitos nos locais de destino, sejam estes no mesmo país ou fora dele. O futuro da liberdade passa também pelo modo como formos capazes de fazer frente às alterações climáticas e às suas consequências.

Inês Barbosa/MS

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