“A literatura imigrante sempre funcionou como uma ponte entre gerações” – Fernanda Viveiros Gonçalves
Fernanda Viveiros Gonçalves é filha de emigrantes açorianos e nasceu em Vancouver, onde os pais se estabeleceram pouco tempo após chegarem ao Canadá. Com quase três décadas de experiência no setor editorial e literário, fundou em 2021 a sua própria editora independente, Arquipélago Press, dedicada à publicação de literatura que valoriza vozes marginalizadas e experiências da diáspora portuguesa. Paralelamente, colabora com várias editoras da Colúmbia Britânica.
Nesta entrevista, Viveiros Gonçalves partilha a sua opinião sobre o papel da literatura na preservação da identidade cultural e linguística das comunidades portuguesas no estrangeiro. Fala do perfil diversificado dos leitores, dos desafios que os autores enfrentam para ganhar visibilidade no panorama literário canadiano, e da necessidade de apoiar, publicar e promover histórias escritas a partir de vivências portuguesas, mas com ressonância universal. Através da sua editora e do seu ativismo cultural, procura garantir que a literatura luso-canadiana seja vista não como uma curiosidade étnica, mas como parte integrante da narrativa literária do Canadá.
Milénio Stadium: Na sua perspetiva, qual é hoje o perfil dos leitores de obras sobre a comunidade imigrante portuguesa? O que procuram nestes livros?

Fernanda Viveiros Gonçalves: Alguns dos nossos leitores são luso-canadianos de segunda e terceira geração que procuram compreender melhor a sua herança cultural. Gosto de pensar que estes livros oferecem uma janela para as experiências vividas pelos seus pais e avós — histórias muitas vezes ausentes das narrativas dominantes e que, em muitos casos, nunca chegaram a ser partilhadas dentro das próprias famílias. É encorajador ver as gerações mais jovens a tentar recuperar a fluência na língua dos seus ascendentes. Como disse Fernando Pessoa, “A minha pátria é a língua portuguesa.” Também noto um crescente interesse dentro da própria comunidade da diáspora, nomeadamente da primeira geração de imigrantes, em reconectar-se com a sua história. Para além disso, há leitores não portugueses, sobretudo canadianos, que se sentem atraídos por histórias contadas através de uma lente cultural portuguesa.
MS: Como pode a literatura contribuir para preservar a identidade cultural e linguística das comunidades portuguesas no estrangeiro?
FVG: Para mim, a literatura imigrante sempre funcionou como uma ponte entre gerações. Nas comunidades portuguesas no Canadá e noutros países, onde certos aspetos da identidade cultural tendem a esbater-se ou diluir-se ao longo do tempo, estas narrativas ajudam a preservar uma ligação emocional com o património comum. Não se trata apenas de aprender sobre o passado, mas de senti-lo, de habitá-lo através de experiências vividas — sobretudo pela linguagem e pelas expressões culturais. Quando os escritores incluem diálogos em português, referências a pratos típicos, tradições ou episódios da história portuguesa, essas experiências ganham vida. É nesses detalhes que os escritores luso-canadianos partilham e preservam histórias únicas que todos podemos apreciar e aprender com elas.
MS: Considera que há apoio suficiente, por parte de instituições portuguesas, para os autores que escrevem sobre a experiência da diáspora portuguesa?
FVG: Não sei se existem instituições portuguesas que financiem especificamente escritores que se dedicam à experiência da diáspora. No entanto, há instituições que apoiam editoras na América do Norte e noutros lugares através da tradução de livros originalmente publicados em Portugal. Já beneficiei dessas bolsas ao publicar traduções em inglês de autores portugueses como Ana Pessoa, José Luís Peixoto e Olinda Beja. No Canadá, existem apoios de organismos artísticos, como o Canada Council for the Arts e bolsas regionais, destinados a escritores em diferentes fases de desenvolvimento. Contudo, essas bolsas apoiam o processo criativo, não garantem publicação. Embora os financiamentos devam apoiar a diversidade na literatura canadiana, os editores não devem sentir-se pressionados a moldar os seus catálogos apenas para cumprir critérios de financiamento. A autenticidade e o mérito literário devem continuar a orientar as decisões editoriais.
Naturalmente, seria ótimo ver mais leitores a procurar ativamente livros de autores luso-canadianos. A literatura portuguesa no Canadá merece mais visibilidade, não como uma categoria étnica, mas como uma parte essencial da narrativa literária do país. Para que isso aconteça, é fundamental publicar obras que despertem verdadeiro interesse, mesmo que não espelhem diretamente as vivências dos leitores. Afinal, se o público está aberto a livros de autores de múltiplas origens, também deve estar recetivo à literatura luso-canadiana.
MS: Quais são alguns dos desafios que os escritores luso-canadianos enfrentam, e como pode a comunidade ganhar mais visibilidade no panorama literário canadiano?
FVG: Um dos desafios que observei, não apenas entre escritores luso-canadianos, mas em muitas comunidades da diáspora, é que muitos autores em início de carreira negligenciam oportunidades de desenvolvimento, optando por caminhos mais isolados, como a autoedição. Esta abordagem limita o crescimento do escritor, pois impede o acesso a críticas construtivas que poderiam melhorar o seu trabalho e dificultam o reconhecimento junto do público canadiano. A diáspora portuguesa continua sub-representada na literatura canadiana, mas isso pode mudar se mais escritores submeterem os seus trabalhos a revistas literárias, investirem em oficinas, cursos e programas de mentoria, e se envolverem em organizações literárias. Outro desafio que notei é a relutância de alguns autores em abordar temas difíceis ou tabus, por receio da reação da comunidade.
MS: Que desafios enfrenta na promoção dos livros que publica, sobretudo entre as novas gerações de luso-descendentes?
FVG: O maior desafio da minha pequena editora tem sido a visibilidade. Deparo-me frequentemente com a perceção de que as histórias da experiência imigrante portuguesa são “de nicho” ou destinadas a um público muito específico. Já ouvi livreiros dizerem: “Não há assim tantos portugueses nesta cidade”, como justificação para não venderem os nossos livros. Curiosamente, nas mesmas livrarias, há frequentemente secções dedicadas a autores somalis, vietnamitas ou croatas — comunidades que também têm presença limitada em certos locais. Isso leva-me a questionar: por que razão algumas narrativas da diáspora são consideradas relevantes e outras ignoradas? E porque se assume que livros de autores luso-canadianos só interessam a leitores portugueses?
Este padrão também se reflete nos media, onde a literatura luso-canadiana nem sempre recebeu a atenção que merece — embora isso esteja lentamente a mudar. É importante sublinhar que muitos escritores de segunda e terceira geração de origem portuguesa não escrevem sobre emigração nem se focam em temas de identidade cultural — e essas histórias são igualmente importantes e uma valiosa contribuição para a literatura canadiana.
MB/MS
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