“A literatura desempenha um papel fundamental e transformador na construção da identidade e da personalidade” – Maria do Rosário Gaspar

No Canadá, como em todos os países onde residem comunidades portuguesas, o ensino da língua portuguesa assume um papel central na preservação da identidade cultural das novas gerações de lusodescendentes. Maria Rosário Gaspar, Coordenadora de Ensino Português no Canadá pelo Camões, I.P., acompanha de perto os desafios e as oportunidades desta missão. Numa era dominada pelo digital e pela multiculturalidade, despertar o interesse dos jovens pela leitura e, em particular, pela leitura em português exige criatividade, inovação e um profundo conhecimento das suas vivências. Nesta entrevista, Maria Rosário Gaspar explica como a literatura pode ser um elo afetivo com as raízes familiares, descreve as estratégias implementadas para motivar os alunos, e sublinha o impacto de programas e iniciativas que aproximam os jovens da sua língua de herança, promovendo não só a leitura, mas também a construção de uma identidade plural e enriquecida.
Milénio Stadium: Como avalia atualmente o interesse dos jovens lusodescendentes pela leitura em português?

Maria Rosário Gaspar: O interesse dos jovens lusodescendentes pela leitura em português varia significativamente de acordo com diversos fatores, como o grau de ligação familiar à língua, o contexto geográfico e social em que vivem, e o acesso a recursos culturais e educacionais em português.
Apesar dos desafios, observa-se uma abertura crescente ao idioma, especialmente entre jovens conectados às redes sociais e à cultura lusófona. Géneros musicais como o rap, o folclore e a música tradicional portuguesa, além de conteúdos no YouTube e influenciadores digitais de países de língua portuguesa, têm despertado curiosidade e identificação. Quando esses jovens se deparam com conteúdos que dialogam diretamente com as suas experiências e identidades, o interesse pela língua — e, consequentemente, pela leitura — tende a aumentar.
Por outo lado, iniciativas como programas de incentivo à leitura, clubes de leitura em português, e projetos escolares envolvendo autores lusófonos contemporâneos têm mostrado bons resultados na aproximação dos jovens à leitura na sua língua de herança. Essas estratégias, ao valorizarem o português como parte da identidade cultural dos jovens, contribuem para reforçar o vínculo afetivo com o idioma e ampliar seu uso no quotidiano.
MS: Que estratégias têm sido implementadas para motivar os alunos a desenvolverem o gosto pela leitura em língua portuguesa?
MRG: O Instituto Camões, por meio da sua rede de Ensino Português no Estrangeiro (EPE), tem desenvolvido diversas iniciativas em colaboração com escolas, universidades e centros culturais. O objetivo é claro: motivar os alunos, especialmente os de origem lusófona, a despertar e fortalecer o gosto pela leitura em português.
Entre as principais ações apoiadas pelo Camões destacam-se a criação e o reforço de bibliotecas escolares com livros adequados aos diferentes níveis de aprendizagem da língua, a promoção de encontros entre autores lusófonos e alunos das escolas do Ensino Português no Estrangeiro (EPE),pois estes momentos aproximam os jovens da literatura viva e despertam a sua curiosidade também as celebrações do Dia Mundial da Língua Portuguesa, que incluem atividades como leituras públicas, concursos de leitura e entrevistas na rádio sobre a importância de falar e ler em Português, transformam a leitura numa experiência dinâmica e envolvente, e, por fim, a formação contínua de professores, com ações focadas em temas como a didática, a literatura infantil e juvenil e estratégias para motivar estudantes com diferentes níveis de proficiência linguística. Essas iniciativas têm sido essenciais para manter viva a ligação dos jovens com sua herança linguística e cultural. Ao promover o prazer da leitura, o português ganha um novo significado no quotidiano desses alunos.
MS: Na sua opinião, qual o papel da literatura na construção da identidade e personalidade das crianças e jovens das comunidades imigrantes?
MRG: A literatura desempenha um papel fundamental e transformador na construção da identidade e da personalidade dessas crianças e jovens. Quando eles crescem entre duas ou mais culturas e línguas, a literatura na língua de herança — no caso dos lusodescendentes, o português — fortalece o sentimento de pertença à cultura de origem. Ela ajuda os jovens a entender as suas raízes, tradições e valores, além de permitir que vejam refletidas nas histórias as suas vivências familiares, os seus modos de falar, costumes e formas de estar no mundo. Isso valida as suas experiências como legítimas e enriquecedoras.
Através da literatura, os jovens têm contato com diferentes perspectivas e formas de vida, o que favorece o desenvolvimento da empatia e do pensamento crítico. Além disso, a leitura ajuda-os a narrar a sua própria história, incluindo os conflitos de identidade, os desafios do bilinguismo e as experiências relacionadas com a diferença cultural.
Um jovem imigrante que lê uma história sobre outro jovem que vive entre duas línguas ou culturas sente-se compreendido e, consequentemente, entende-se melhor. Esse sentimento de identificação é muito importante para a construção de uma identidade segura e positiva. A leitura de autores portugueses, brasileiros, africanos,etc funciona como uma ponte entre a cultura da família e a cultura do país onde vivem. Isso promove uma identidade múltipla e integrada, em que o jovem não tem que escolher entre uma cultura ou outra, mas aprende a integrar ambas de forma natural. A leitura literária em português ajuda a manter laços afetivos com a família, especialmente com avós ou parentes que falam apenas português. Esse vínculo reforça a estabilidade emocional dos jovens, o que é fundamental para seu equilíbrio e desenvolvimento.
MS: Como pode o Instituto Camões contribuir de forma mais eficaz para a promoção da leitura em português junto das comunidades no Canadá?
MRG: O Camões,I.P., desempenha um papel fulcral, no Canadá.
A aquisição e oferta de bibliotecas escolares com livros atrativos para jovens e crianças, incluindo literatura juvenil, banda desenhada,etc, daptados às suas idades( Plano de Incentivo à Leitura ( PIL) é um exemplo disso. Além disso o encontro com escritores Portugueses, presenciais ou virtuais,como parte do Programa de Promoção e Divulgação da Língua Portuguesa, em que os temas são voltados para jovens e suas famílias, fortalece ainda mais esse vínculo cultural.Pretende-se que os autores convidados , ao relatarem/contarem histórias de viva voz ,despertem, ainda mais, o interesse dos jovens pela literatura. A oferta de manuais escolares, que são cada vez mais interativos e mais voltados para o Ensino de Português como uma língua de herança ,aos professores e alunos, é outro exemplo.
A coordenação de ensino também trabalha diretamente com as escolas canadianas ao celebrar o “ Portuguese Speaking Portuguese Heritage Month”, por exemplo, como forma de integrar ,promover e realçar a importância da literatura e Cultura Portuguesas. Os Memorandos de Entendimento celebrados com algumas Universidades,que possuem estudos portugueses é outra forma de ampliar a difusão e o alcance da literatura portuguesa.
Resumindo, o investimento que é feito pelo Camões, I.P., é o que torna acessível aos nossos alunos/jovens manterem o contato com a Língua e Cultura Portuguesas, pois o acesso a obras de autores portugueses e materiais didáticos no Canadá é muito difícil.
MS: Que tipo de livros ou autores considera mais atrativos e eficazes para estimular a leitura nas novas gerações lusodescendentes?
MRG: Para estimular a leitura nas novas gerações lusodescendentes, os livros e autores devem ser linguisticamente acessíveis, com níveis de leitura adequados, culturalmente relevantes, abordando temas com os quais os leitores se identifiquem, e narrativamente envolventes, contendo ação, humor, emoção ou fantasiaI, por exemplo. Idealmente, esses livros devem ser também visuais e multimodais, com ilustrações, banda desenhada, versões digitais, etc.
Para crianças de 6 a 10 anos,por exemplo, recomendam-se livros ilustrados com texto simples, histórias que envolvam animais, amizade, escola e família, além de contos populares adaptados.Entre os autores sugeridos destaca-se António Torrado.
Já para adolescentes e jovens entre 14 e 18 anos, indicam-se romances jovem-adulto, ficção contemporânea e fantasia. Essas narrativas devem abordar temas como identidade, imigração, pertença e conflitos familiares, preferencialmente com textos curtos ou divididos em capítulos rápidos, que incentivem a leitura em jovens com menor fluência. Entre os autores recomendados estão David Machado e Afonso Cruz.
MB/MS
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