A literatura como ponte da memória

A literatura tem o poder de atravessar fronteiras, unir gerações e preservar identidades. Para as comunidades emigrantes, escrever e ler as próprias histórias é uma forma vital de resistir ao esquecimento, de manter viva a ligação às raízes e de afirmar, perante o mundo, a riqueza da experiência migratória. No seio da comunidade portuguesa no Canadá, uma das mais antigas e numerosas do país, esse papel da literatura revela-se cada vez mais essencial. Emanuel Melo, escritor luso-canadiano, é um dos que se dedica a essa missão: contar a emigração portuguesa em palavras que falem tanto ao passado como ao presente.
Na sua visão, o público que hoje procura obras sobre a comunidade portuguesa no Canadá já não é exclusivamente composto por imigrantes ou seus descendentes. “Acho que cada vez mais os leitores interessados na história da emigração portuguesa no Canadá não são os próprios portugueses que viveram a sua emigração, mas sim os de fora da nossa diáspora, os da comunidade canadiana”, afirma. O que move estes leitores, diz, é uma curiosidade legítima sobre um grupo étnico presente no Canadá há mais de 70 anos e um desejo de compreender o modo como os portugueses contribuíram para o tecido social e cultural do país.
Mas porquê a literatura? Porquê a necessidade de passar as histórias para o papel? Talvez porque tantas delas nunca foram ditas em voz alta. Durante décadas, os emigrantes portugueses concentraram-se na sobrevivência: encontrar trabalho, criar filhos, construir uma vida. As emoções, as perdas, as saudades, tudo isso foi guardado em silêncio. “Os nossos pais e avós raramente escreveram ou partilharam aquilo por que passaram. E se o fizeram, foi em cartas perdidas ou em histórias sussurradas em jantares de família. A literatura dá corpo a esse silêncio”, reconhece Emanuel Melo.
Se os primeiros imigrantes tinham, em muitos casos, pouca escolarização e poucas oportunidades para registar as suas vivências, hoje há uma nova geração de autores luso-canadianos a recuperar e reinterpretar essas memórias, muitas vezes em inglês, língua dominante no país e mais acessível às novas gerações. Para Melo, essa transição linguística é inevitável, mas também estratégica: “A literatura pode contribuir para preservar a identidade cultural e linguística das comunidades portuguesas no estrangeiro pela escrita das nossas estórias pessoais e coletiva. Esta escrita vai ter que ser redigida não só em português, mas especialmente em inglês porque os interessados em conhecer-nos não leem português. Infelizmente, muitos lusodescendentes não conseguem fazer uma leitura em português.”
Num tempo em que as identidades são cada vez mais múltiplas e fragmentadas, a literatura torna-se um lugar de reconciliação: entre o passado e o presente, entre o país de origem e o país de acolhimento, entre avós que viveram a travessia e netos que crescem num mundo diferente. Emanuel Melo acredita que contar essas histórias pode ajudar a aproximar gerações. “O livro que escrevi (em inglês) e que está inédito é uma obra que acho que poderá ajudar nesta questão porque escrevi um romance sobre um personagem que precisamente mostra as questões e desafios que muitos emigrantes partilham.”
Ainda assim, publicar continua a ser um desafio. Emanuel Melo enfrenta, como tantos outros escritores emergentes, as barreiras de um mercado editorial competitivo e pouco aberto a vozes periféricas. “A divulgação da escrita é sempre uma preocupação para escritores como eu”, admite. “Tenho vários contos publicados em revistas online e em antologias, mas ainda não consegui achar uma editora que estivesse interessada no livro/romance que escrevi em inglês.” Perante esse bloqueio, pondera a auto-publicação, um caminho que tem dado frutos a outros autores da diáspora, como Devin Meireles, que publicou The Portuguese Immigrant (Atlantic Heritage Story) com sucesso. Mas o apoio institucional, que poderia ajudar a desbloquear muitos destes obstáculos, parece, para já, inexistente. “Se existe, não sei. Acho que não existe apoio suficiente e não sei donde viria este apoio. Seria do governo canadiano ou de Portugal ou de alguma outra instituição? É uma boa pergunta sobre a qual eu também gostaria de saber a resposta.”
Apesar disso, Emanuel Melo continua a acreditar no poder transformador da literatura. As suas histórias, muitas delas disponíveis no seu site pessoal (https://thetorzorean.com), refletem as complexidades da experiência luso-canadiana: o sentimento de desenraizamento, a procura de pertença, os conflitos identitários vividos por quem cresce entre duas culturas. “Acima de tudo, estes livros têm de ser em inglês porque a maioria dos lusodescendentes não pode ler na língua dos antepassados, que já faz parte da sua ancestralidade e não do seu dia-a-dia.”
É nesse cruzamento entre herança e presente que a literatura pode realmente fazer a diferença. Ler sobre os nossos pais, os nossos avós, sobre a vizinha que deixou os Açores nos anos 50 ou o jovem de Toronto que tenta descobrir o que significa ser português hoje — tudo isso contribui para formar uma narrativa coletiva que fortalece o sentimento de pertença.
Num mundo onde a dispersão e o esquecimento ameaçam constantemente a memória das comunidades imigrantes, escrever é um ato de resistência. E também de esperança. “Talvez algum dia consiga publicar o meu livro”, diz Melo. “E seria uma grande alegria para mim ter contribuído de alguma forma para fortalecer o sentido de pertença que se encontra no que escrevi.”
Até lá, as suas palavras continuam disponíveis para quem quiser escutá-las — e reencontrar nelas um pedaço da sua própria história.
MB/MS
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