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A liberdade, finalmente!

25 de abril - milenio stadiu

 

A notícia chegou a Toronto no dia 26 – o regime marcelista tinha sido derrubado pelo Movimento das Forças Armadas. A intervenção militar trazia a Portugal os ventos de mudança há muito desejados. O país saiu à rua extravasando a conquista da liberdade tão desejada há 49 anos. Somos livres era o grito que mais se ouvia, por todo o lado. E o grito ecoou deste lado do Atlântico. Finalmente!

Porque não queria fazer parte de uma guerra colonial iniciada em 1961, sob as ordens do ditador António de Oliveira Salazar, que considerava injusta e inaceitável, José Carlos Sousa saiu cedo de Portugal. Depois de anos na Europa chegou ao Canadá onde ficou até hoje. Foi à conversa com ele que melhor entendemos o significado e impacto do 25 de Abril na vida de quem, fora do seu país natal, vivia as angústias dos conterrâneos oprimidos, sem liberdade.

A liberdade que, naquela madrugada de abril, embriagou de felicidade todos os que lutaram por uma mudança de regime e pela instauração da democracia. A liberdade de que hoje todos usufruem em Portugal e tão poucos sabem dar o devido valor.

José Carlos SousaMilénio Stadium: Como é que soube que o que é que estava a acontecer em Portugal no dia 25 de Abril de 1974 e que consciência política é que tinha nessa altura para ter noção da importância do que estava a acontecer?
José Carlos Sousa: Nessa altura, eu trabalhava no Consulado Geral de Portugal em Toronto e a notícia veio de madrugada. Foi um marco histórico na vida portuguesa. Com o 25 de Abril veio a liberdade e a democracia. E naquele primeiro dia foi uma emoção grande, porque aqui fora, como imigrantes, sentíamos que se tratava de uma mudança grande no nosso país. Uma mudança que era exigida e esperada e que confirmou todas as nossas ambições de liberdade – o fim da censura e a igualdade de género. Alguns temas que me interessavam foram atingidos com esse dia.

MS: E também o fim da guerra colonial…
JCS: Sim. Eu não estava de acordo com a guerra no Ultramar. E saí de Portugal muito cedo, aos 15 anos. Viajei pela Europa. Depois consegui uma bolsa de estudo na Alemanha, onde tirei um curso, uma aprendizagem na Siemens Aktiengesellschaft. E depois de terminar esse estudo, voltei a Portugal para cumprir o contrato e daí regressei à Alemanha e voltei. Depois vim para o Canadá.

MS: Como se deu a sua “aproximação” à política?
JCS: Ninguém me ensinou política. Eu tive experiência própria porque quando fui para a escola, para a primeira classe, quando entrei no primeiro dia, fiquei surpreendido porque o meu professor, chamado Carlos de Lineu Miranda, era alto, elegante e de Cabo Verde. Isto na Nazaré… pode imaginar, nessa altura, o impacto que tinha. E por sorte, ele frequentava a casa do meu pai, que também era frequentada nessa altura por muitos portugueses da oposição, incluindo Mário Soares e outros líderes de Leiria. Portanto, foi uma aprendizagem. Quanto à escola tive sempre o mesmo professor na segunda, terceira e quarta classe e ele tinha qualidades de liderança extraordinárias. Criou em mim um impacto muito grande. Quer dizer, aprendi a ler com ele. Mais tarde quando me apercebi da retórica contra os movimentos de libertação, muito ofensiva, muito negativa em relação aos locais que eram todos considerados como bárbaros, a mim, custou-me entender. Porque a pessoa que me ensinou a ler, a pessoa que me orientou em termos de educação para assuntos interessantes, pela maneira de ensinar dele… essa pessoa era bastante evoluída e a mim custava-me a acreditar. E não, não ia aceitar. Não consegui aceitar. Foi uma experiência de vida.

MS: Mas, portanto, ainda muito novo já tinha consciência da ausência de liberdade em Portugal. Plena consciência disso?
JCS: Sim, plena consciência disso, eu tinha. Eu tinha sorte, porque tinha a possibilidade de ter um pai muito avançado que tinha uns 500, 600, talvez 2000 livros, nessa altura. Mais livros do que na biblioteca da Nazaré. Então eu tinha acesso a muitos livros – Dostoiévski; todos os autores brasileiros que estavam no Index. etc. Portanto, isso foi desde bastante cedo uma abertura ao que se passava e sobretudo a própria Nazaré e a população e os pescadores serviram de base também para a minha evolução, para a minha educação, sobretudo no que diz respeito às mulheres.

MS: Deduzo que tenha percebido também muito cedo que tinha que sair do país para não ir para uma guerra que não compreendia.
JCS: Sim. E assim foi. O meu pai deu-me uns 50 escudos e disse “Olha! Vai, mas com uma condição – escreves-me um postal ou uma carta, diariamente”. Anos depois, quando voltei a Portugal, o meu pai mandou-me chamar ao escritório dele e disse “tenho aqui uma coisa para te mostrar”. Tinha todas as minhas cartas guardadas num dossier.

MS: Logo no início da nossa conversa disse que a questão da igualdade de género era um tema que o interessava. Posso saber porquê?
JCS: As mulheres da minha família, incluindo a minha avó, tiveram uma grande influência. E na Nazaré, como a Madalena sabe, durante muitos meses os homens “fugiam”, iam para a pesca do bacalhau seis meses, oito meses. E então eram as mulheres que tomavam conta de tudo. A administração da família estava, portanto, nas mãos das mulheres que administravam e tomavam conta de todas as decisões.
Então eu estava bastante impressionado com o que via também em minha casa e admirava, por exemplo, como é que a minha avó Maria Rocha sabia tanto sobre Gandhi nessa altura. Ela falava muito de Gandhi. A minha avó que não sabia ler nem escrever, mas conhecia a política de Gandhi. Ela contava-me tudo. Anos mais tarde, tive a oportunidade de ir a uma conferência aqui em Waterloo, onde falava o neto de Gandhi. E eu levei o meu neto comigo.
Voltando à mulher, só queria terminar este pensamento: sempre fiquei com aquela impressão de que a igualdade de género era favorável ali na minha terra. Mas quando fui para outras cidades vi que era uma discrepância, uma diferença terrível. E então, quando foi o 25 de Abril, preocupei-me muito com esta questão. Ao ler a Constituição, fiquei bastante contente por ver que os aspetos relacionados com este tema, estavam espelhados nos artigos 9; 36 109. O nove é aquele que promove a igualdade entre homens e mulheres. O 36 refere-se à família, casamento, filiação. Estabelece que os cônjuges, ou seja, marido e mulher, são iguais, têm os mesmos direitos. E depois o 109 que defende a participação das mulheres na vida política. Eu pensei então na minha avó. Antes do 25 de Abril, portanto, durante a ditadura, amordaçaram os direitos e as liberdades da população portuguesa e particularmente reprimiram as organizações políticas, incluindo, uma organização de mulheres que era o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, que nasceu em 1914. O 25 de Abril trouxe uma grande projeção à mulher portuguesa. Se olharmos agora para o Governo, temos mulheres em posições de chefia.

MS: Voltando à nossa conversa sobre o 25 de Abril em Toronto, como é que foi viver esse período aqui?
JCS: Aqui no Canadá, como a Madalena sabe, havia um movimento democrático em Montreal. E depois aqui em Toronto também havia muita oposição ao regime. Quem quiser saber mais tem muita informação já digitalizada – muitos artigos, muitos documentos, cartas de Humberto Delgado, Henrique Galvão e outros. Mas também tem muitos, muitos jornais portugueses, coleção completa de jornais luso-canadianos, muitos documentos acerca da luta das empregadas da limpeza. Tudo isto muito graças a uma organização portuguesa chamada Portuguese Canadian History Project, pode ser consultado no Clara Thomas Archives&Special Collections, York University Libraries.

MS: Nós estamos, neste momento, prestes a celebrar 49 anos da Revolução de Abril e ao mesmo tempo estamos a celebrar 70 anos de imigração oficial portuguesa no Canadá. De que modo é que acha que estas duas efemérides, se podem interligar?
JCS: Primeiro, quero dizer que o meu tio António Sousa veio no Saturnia. Muitos dos imigrantes vieram por motivos políticos. Muitos outros vieram por causa da pobreza, à procura de um mundo melhor. Outros para fugir da guerra colonial. Essas são talvez as três motivações essenciais.

MS: E os movimentos de denúncia do que se vivia em Portugal que aconteciam um pouco por todo o mundo e também aqui em Toronto: manifestações a denunciar a falta de liberdade, o regime ditatorial, essas coisas todas. Que impacto é que acha que a diáspora portuguesa acabou por ter na queda do regime do Estado Novo? Este alerta dos portugueses espalhados pelo mundo contribuiu para a deterioração do regime?
JCS: Eu penso que sim. Porque embora não fossem manifestações de grande volume eram manifestações que teriam o apoio de algumas organizações locais e que denunciavam a falta de liberdade em Portugal. O 25 de Abril trouxe à comunidade uma abertura muito grande em relação à sociedade canadiana, depois de perceberem que nós conseguimos uma revolução sem guerra. Muito apoio de entidades canadianas, dos canadianos e isso verificava-se nos encontros, nos cafés, nas reuniões onde eu ia. Nessa altura, lembro-me que as pessoas ficavam muito admiradas e bastante contentes por isso ter acontecido. E a nós dava-nos um certo orgulho. Aqui em Toronto lembro-me de uma ação, uma das primeiras organizações que fez uma festa de apoio ao 25 de Abril foi o Amor da Pátria Social Club e convidou todos os órgãos de comunicação social, os clubes, associações, o consulado e representantes de diversas organizações. E o que aconteceu nessa altura é que alguns diretores não aceitaram muito bem. O senhor Manuel Martins, que era o presidente da associação, conta numa das revistas da Associação Cultural 25 de Abril de Toronto (celebração dos 31 anos do 25 de Abril), que ele encomendou para a festa cravos vermelhos e quando os cravos chegaram, vinham pintados de azul.

MS: Se eu lhe pedisse para me dizer quais são, na sua opinião, as diferenças entre o conceito de liberdade, aquela liberdade que se exaltava nas ruas de Portugal em 1974, depois da revolução e o conceito de liberdade que temos hoje… Que diferenças é que identifica?
JCS: A meu ver, temos que partir do princípio de que a democracia demora tempo a evoluir. Não é uma coisa que se atinja com um estalar de dedos. Temos que aceitar que não é perfeita. Que está sempre em evolução. Assim como nós, seres humanos, estamos em evolução constante. A sociedade tem tendências geopolíticas, as crises económicas, todos esses fatores que influenciam e podem desestabilizar. Portanto, acho que vamos a caminho da maturidade. Há muitas falhas e muitas vitórias, mas no conjunto, se nós tivermos uma balança e colocarmos os prós e os contras, os prós pesam 80% mais.

Madalena Balça/MS

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