Temas de Capa

A importância de respeitar o passado para garantir o futuro

Credito: Francisco Pegado

Com uma vida dedicada ao ensino e à preservação da cultura tradicional, Mafalda Silva Rego é um exemplo notável de como o folclore pode ser uma ponte viva entre passado e futuro. Professora com mais de duas décadas de experiência, tem também um percurso marcante como voluntária no Grupo Etnográfico de Areosa, onde, há cerca de 40 anos, promove a dança, a música e a identidade cultural do Alto Minho. Nesta entrevista, realizada após a sua participação no Encontro Vianense em Toronto, Mafalda reflete sobre o valor do folclore como herança imaterial, a sua relevância no mundo globalizado e a importância de manter viva a tradição sem a cristalizar. Fala-nos da canoa que desce o rio — uma poderosa metáfora para a cultura em movimento — e da urgência em documentar, partilhar e reinventar aquilo que nos torna únicos. O seu testemunho é um apelo ao enraizamento, à transmissão e à celebração do que nos liga à nossa terra e às nossas origens.

Milénio Stadium: O que é para si folclore? O que é que lhe vem à mente quando pensa em folclore? 

Mafalda Rego. Créditos: Facebook.

Mafalda Silva Rego: O folclore, para mim, é como um tesouro, um tesouro que nós temos e que devemos preservar e passar às novas gerações. Dentro do folclore estão as danças, estão os cantares, estão as músicas, estão as histórias que os nossos antepassados nos contam, estão os trajes que eles usavam e é para mim algo muito importante, porque é algo que eu devo passar, penso eu. Devo passar às próximas gerações.

MS: Porque sente que esse tesouro, no fim de contas, é em grande medida a raiz que a liga à sua terra e ao seu povo? 

MSR: Sim, é a humanidade. No fundo, há quem pense que é importante deixar aos filhos casas, carros, bens materiais… eu penso que a melhor coisa que eu posso legar às novas gerações é a cultura, é aquilo que me ensinaram também. E não falo isto só em termos pessoais, familiares, mas também na minha profissão. Enquanto professora também é essa mensagem que eu tento todos os dias passar, esta cultura que é oral, que não está nos livros, que não está escrita, tento passá-la para as novas gerações. Neste mundo globalizado, onde tanta coisa parece igual em qualquer parte do mundo, isso é importante. Por exemplo, nós agora quando estivemos em Toronto vimos muitas coisas que também temos aqui em Portugal. Mas o que nos distingue? O que nos torna únicos? Essa cultura tradicional. É isso que nos distingue e que é interessante descobrir em cada parte do mundo. Há particularidades lindíssimas que eu tenho descoberto pelo mundo fora. E esses momentos de descoberta do outro, que é igual a nós, mas ao mesmo tempo tem aquela particularidade diferente de nós, parecem-me ser muito, muito importantes e muito enriquecedores acima de tudo.

MS: Mas o folclore no nosso país, por exemplo, é bastante diverso. Quer dizer, basta sair da cidade de Viana, ir para Braga e já há diferença. Aliás, no próprio concelho de Viana também há diferenças consoante se está mais perto do mar ou mais na zona interior. Isso também faz com que aprendamos mais até sobre a história da construção do nosso país e do desenvolvimento do nosso povo?

MSR: Sim, sem dúvida. Aliás, esta ida ao Canadá trouxe, para os elementos dos nove grupos folclóricos que foram, uma experiência única. Porque apesar de todos vivermos aqui uns mais junto do mar, uns mais no interior, e de nos encontrarmos constantemente em espetáculos, nas festas da Senhora da Agonia, etc., a verdade é que na preparação do espetáculo que fizemos para Toronto, aprendemos imenso uns com os outros. Não só sobre as particularidades dos trajes de cada um, mas sobre como se dançava, as histórias que nos contaram dos grupos a que pertencem. Portanto, a ida ao Canadá foi muito rica também nesse sentido. Nós temos feito muito trabalho conjunto. Há jornadas de reflexão, desde logo em que temos sempre um tema para debater entre todos os grupos, o Festival Internacional do Minho, que já vai na 27.ª edição e é organizado em conjunto, também é algo único a nível de todo o país porque não é um grupo que organiza este festival, são vários grupos (neste momento são oito grupos que organizam esse festival), mas também a Festa da Dança, a comemoração do Dia Mundial do Canto, do Dia Mundial da Dança e muitas outras iniciativas. Temos feito também espetáculos temáticos. Um chama-se Encontro de Culturas, em que, além dos grupos folclóricos daqui chamamos os imigrantes que residem em Viana do Castelo para que possam mostrar também a sua cultura, aquilo que trazem do seu país para aqui. E é um espetáculo lindíssimo, porque as pessoas passam a conhecer-se melhor, a cumprimentar-se na rua. Deixa de haver o nós e o outro e passa a ver o artista, os artistas. Muitos deles nunca tinham pisado no palco, mas ali são artistas. E temos o espetáculo A Minha Terra é Viana, que junta normalmente mais de 400 bailarinos e músicos e que esse sim, é um espetáculo totalmente dedicado a Viana do Castelo. O que aconteceu de novo na ida a Toronto é que foi a primeira vez que aconteceu a internacionalização. Isso sim foi a primeira vez. Ou seja, nunca as atividades da Associação de Grupos Folclóricos do Alto Minho tinham ocorrido num país diferente e foi muito especial. Até porque o Canadá, como vocês sabem, é muito especial para nós. Aqui em Viana do Castelo há muita história de ligação de Viana do Castelo ao Canadá, nomeadamente a Saint John e à Terra Nova.

MS: O folclore é muitas vezes visto como uma expressão artística fixa, como algo em que não se deve mexer, não se deve alterar. Acha que há alguma margem de construção ou de reconstrução do folclore para não o deixar cristalizar e esvaziar de significado?

MSR: Toda a margem! Aliás, é esse o trabalho que nós fazemos. Cada geração aporta algo de si. A folclore aporta algo de novo. O folclore não é imutável. Os trajes não são imutáveis, as danças não são imutáveis. Cada nova geração que aprende estas danças, que veste os trajes, traz algo de si também. Hoje em dia nós temos, nos nossos grupos, elementos com uma educação a nível artístico, seja musical, não é o canto ou o instrumental, ou seja, até na dança, que já não tem nada a ver com as gerações de há 30, 40, 50 anos ou mais anos. Não é que sejam melhores, nem piores, mas estão mais preparados porque tiveram escola, porque conhecem mais sobre música, sobre dança. Portanto, o que eles fazem já não é, já não pode ser o que faziam as primeiras gerações dos grupos folclóricos. A cultura, quando fica imóvel, estática, morre. Nós temos que ter uma ideia contrária. Nós temos que trazer algo de nós, das nossas gerações, para a cultura. Alguém, numa determinada altura, disse-me e eu fixei esta imagem e nunca mais me esqueci – “A cultura tradicional é como uma canoa que desce o rio, a olhar para trás, mas não deixa de descer o rio”.

MS: Mas de qualquer maneira, há sempre um limite, que é o respeito pela tradição e pela história, não é?

MSR: Com certeza! Nós aqui em Viana do Castelo temos inúmeras publicações relativas ao trajar, ao traje, e os grupos folclóricos, se quiserem fazer um bom trabalho, devem procurar essas publicações. Devem ler o que está escrito. O mesmo não posso dizer, infelizmente, em relação ao cancioneiro, em relação às danças. Temos quilómetros por percorrer para criar este conhecimento que, neste momento, passa apenas oralmente. Mas lá está, a canoa anda em frente, desce o rio, mas sempre a olhar para trás, com propriedade.

MB/MS

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