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“A discriminação foi criada pelos homens e quando nós não falamos, somos cúmplices”

- Jamie DosSantos

É quase um dado adquirido que o desporto é muito mais masculino do que uma área pertencente às mulheres. Sempre assim foi. Felizmente (para quem defende e acredita na igualdade de género), as coisas começaram a mudar e a vontade feminina tem agora lugar. Se se quer ser atleta, porque não? Se se quer dedicar a vida ao desporto, tal como muitos homens fazem, porque não? Talvez tenha sido a partir destas perguntas que várias mulheres em todo mundo começaram a vincar o seu espaço no desporto e nas competições de alto nível. E basta olharmos para os resultados dos representantes do Canadá nos Jogos Olímpicos deste ano em Tóquio, para facilmente percebermos que as mulheres representaram o país com muito mais destaque do que o lado masculino.

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2008 World Cup, Serbia, with Female team. Créditos: DR

No entanto, e apesar de tudo, as mulheres têm, ainda hoje, de provar o que valem de forma mais notória do que os homens para que sejam reconhecidas. A título de exemplo: em 2017, na lista da Forbes, apenas Serena Williams integrou a lista dos 100 desportistas mais bem pagos. A tenista ocupou o 51º lugar, com ganhos no valor de 21 milhões de euros, menos 54 que Cristiano Ronaldo, líder do ranking. Em 2018, devido à gravidez, Serena desceu abruptamente na classificação e nenhuma mulher entrou na lista. A maternidade tem aqui um papel muito ingrato. Mas para além da parte monetária, e para além do reconhecimento do talento, que demora mais tempo a chegar, podemos ter outro exemplo também evidente: quem são as pessoas que estão numa bancada de imprensa de um estádio? A resposta é esclarecedora: em 100 jornalistas, apenas 10 são do sexo feminino e quase todas da imprensa escrita. Na edição do jornal Milénio Stadium desta semana, tivemos a oportunidade de falar com Jamie Kitchell DosSantos, ex-atleta de Taekwondo, que, entretanto, foi treinadora nacional e agora é administradora de atletas alta performance.

Milénio Stadium: Sabemos que as mulheres, desde sempre, tiveram que lutar muito mais do que os homens para conquistar e vencer na vida – principalmente na vida profissional. No desporto, a luta deve ter sido ainda mais complexa, porque essa sempre foi uma área muito associada aos homens. Como foi entrar para este mundo do desporto e ganhar um lugar na década de 80?

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1989 World Taekwondo Championships, Seoul, Korea. Créditos: DR

Jamie DosSantos: Entrar no desporto foi fácil para mim, principalmente porque sempre fiz desporto desde pequena e depois fiz parte de desportos de competição durante o ensino secundário. As atletas do sexo feminino inicialmente não eram vistas de forma igual, desde o treino até à competição, mesmo fazendo parte de uma equipa, não era dada muita atenção às mulheres no desporto. 

MS: Aos 21 anos, Jamie entrou no mundo do Taekwondo. Que tipo de apoios teve ao longo dos seus anos enquanto desportista?

JDS: O Taekwondo começou como uma atividade divertida que rapidamente se transformou num desporto de competição para mim – acabei por gostar desse aspeto da competição que o desporto trazia e dediquei-me muito. O apoio à minha volta era dos meus pares/companheiros de equipa. Apesar da competição no Taekwondo ser uma atividade individual, o treino era feito em grupo, o que tornava difícil quando a maioria dos seus companheiros de equipa são homens, mais altos e maiores do que eu, por isso eu e outras atletas femininas tivemos de nos adaptar.

MS: Sentiu, de alguma forma, discriminação em relação ao tratamento dado aos seus colegas homens?

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1991 World Taekwondo Championships, Greece – Team Canada. Créditos: DR

JDS: Tive a sorte de ser rodeada por grandes companheiros de equipa, sempre me trataram de forma igual. As Artes Marciais são uma prática asiática, a maioria dos instrutores eram/são coreanos do sexo masculino e têm definitivamente uma forma diferente de tratar os seus homólogos. Vindo eu de um contexto asiático, parecia ser de facto a norma seguir as tradições.  Respeito os valores das Artes Marciais, a importância de se ser justo e igual pesa por vezes mais na minha mente. Sou franca, falo e defendo o que está certo. Muitas vezes nós, enquanto mulheres, temos de trabalhar mais e falar mais alto para sermos ouvidas, para sermos vistas de forma igual. Foi um desafio e continuará a ser um desafio, enquanto nós estamos a redesenhar uma nova narrativa de mulheres que desempenham um papel chave nas organizações.

MS: Há uma questão muito peculiar em relação às mulheres e ao desporto: a maternidade. De que forma e a que níveis é que, em particular no desporto, as mulheres são prejudicadas por decidirem ser mães?

JDS: Antigamente, as mulheres ficavam em casa e cozinhavam, limpavam e cuidavam das crianças enquanto os maridos saíam para o trabalho e sustentavam a família. A realidade ainda não é uma responsabilidade partilhada entre marido e mulher quando ambos são pais com emprego – ainda se espera que as mães façam mais. Isto não é diferente das mães atletas. Equilibrar a maternidade e uma carreira desportiva pode ser um desafio, é exigente para o corpo e para a mente, talvez pelo stress financeiro. No entanto, está a ser conseguido pelas mães atletas que estão a provar que ainda podem alcançar o sucesso profissional, e alcançar ao mais alto nível (como nos Jogos Olímpicos), mudando a narrativa criada antes, apresentando agora uma norma em constante evolução. 

MS: Com a luta pelos seus direitos, as mulheres têm conseguido vingar nesta área. Algo que se tornou, aliás, bem evidente neste últimos Jogos Olímpicos. Ainda assim, apesar de a evolução positiva ser notória, considera que o desporto feminino ainda vive na sombra do masculino?

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1993 World Military Taekwondo Championships, Kingston, Ontario, 1st place winners. Créditos: DR

JDS: Acredito que a mudança está a chegar. Defender os nossos direitos enquanto mulheres continuará a ser uma batalha até que mais mulheres façam parte do grupo dos que tomam decisões, para que haja uma perspetiva diferente e equilibrar o processo. Graças àqueles que se levantam e desafiam o sistema, estamos a caminhar na direção certa com as mulheres no desporto, LGBQT+ e muito mais. A discriminação foi criada pelos homens e quando nós não falamos, somos cúmplices. Já não há lugar toda e qualquer forma de discriminação, não é aceitável. 

MS: Como é que vê a evolução do desporto feminino no Canadá, desde a altura em que a Jamie começou até agora?

JDS: Mais mulheres continuarão a crescer no sistema desportivo (em qualquer organização) no Canadá, trazendo competências, perspetivas diferentes, e também diferenças estruturais e culturais que acabam por conduzir a soluções eficazes para as organizações (dentro e fora do desporto). 

MS: Não é só no desporto praticado que se notam as diferenças de género. Em paralelo, no jornalismo desportivo são, ainda, poucas as mulheres que fazem parte da área. Acredita que a comunicação social tem um papel fundamental nesta questão da masculinidade do desporto?

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2007 World Taekwondo Championships, Beijing.
Received Female Coach Award. Créditos: DR

JDS: A sub-representação das mulheres na força de trabalho, que inclui as mulheres no jornalismo desportivo, continuará a mudar em todas as profissões, uma vez que mais organizações que reconhecem a igualdade de género fazem parte do seu processo de contratação.  Vejo que na América do Norte, os centros desportivos estão a colocar mais recursos na cobertura do desporto feminino e mais jornalistas ou especialistas em desporto estão a ser vistas na televisão e nos meios de comunicação social. No entanto, isto é por ondas, estou ansiosa por ver isso a acontecer de forma mais consistente, com a cobertura daqueles que trabalham nesse campo.

MS: Até que ponto os movimentos feministas têm ajudado a abrir portas para as mulheres que querem fazer do desporto a sua vida?

JDS: O atual foco do movimento é acabar com a discriminação, defendendo os direitos e a igualdade género com alianças entre feministas, LGBTQ+ e grupos de antirracismo. Continuará a abrir portas para muitos, não só para as mulheres, mas também para aqueles que estão a ser discriminados. Penso que esta Olimpíada tem dado motivação a muitas mulheres atletas e mães atletas – quando lhes foi dito que não pode ser feito, bem, está agora a ser feito e ao mais alto nível. Tudo é possível e exequível quando nos focamos no que queremos.

MS: Na sua opinião, o que há ainda a fazer para que as mulheres consigam ocupar um lugar de igualdade no desporto em relação aos homens?

JDS: A Equipa Olímpica Canadiana era composta por 370 atletas, 225 mulheres e 145 homens, das 24 medalhas ganhas pela Equipa Canadiana, 75% vieram de atletas do sexo feminino. Os números de participação devem receber um impulso após o nosso sucesso nos Jogos Olímpicos, as organizações desportivas precisam de abraçar esta vibração positiva e trabalhar para garantir a continuação das mulheres no desporto. 

Catarina Balça/MS

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