Opinião

Quando as bibliotecas falavam

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Foto: DR

 

Os livros (…). Em si mesmos, nada têm de mágico.

A magia está no que eles nos dizem, em como nos apresentam

uma única peça feita da costura de vários bocados do universo.

Ray Bradbury, Fahrenheit 451

A primeira biblioteca da minha vida foi toda ela construída a partir de vozes que se ergueram dos caboucos da minha ancestralidade, muitos anos antes de o audiovisual ter sido inventado. Foi a partir delas, das vozes de meus pais e avós, que consegui percorrer as mais importantes estantes de um saber que, desordenadamente catalogado, contribuiu para a formação da minha identidade.

Criança ainda, e muito a sul de todos os lugares de onde provinham as minhas raízes, comecei por ter noções básicas de geografia de cada vez que meus pais falavam da sua remota aldeia, perdida numa das sinuosas estradas que rasgavam as encostas talhadas em socalcos a desaguar no Douro vinhateiro.

Relatos de pobreza congénita, muita fome e injustiças saltaram dos compêndios de sociologia que tudo me ensinaram sobre as desigualdades sociais, as diferenças entre as elites e os mais pobres, ditando um servilismo mudo perante o poder que facilitava a luta pela sobrevivência.

A renúncia ao supérfluo e o saber viver com o essencial foram práticas que aprendi desde o berço, quando as contas de subtrair e de dividir eram o forte da aritmética que me habituei a ouvir. Dividir uma sardinha por três irmãos, distribuir nacos de pão com cebola acompanhados de azeitonas retalhadas na barrica da miséria, cortar um tomate ao meio demarcando a fronteira de cada metade com o sal da solidariedade, represar regos de água por frações de horas para que esta chegasse às leiras de onde, apesar de pequenas, se subtraía o sustento de cada um, foram histórias de vida ou de morte tatuadas na memória de pais e avós de outros tempos.

Amiúde falavam das tradições que lhes haviam preenchido a curva apertada da juventude: as desfolhadas na eira, onde as cantigas ao desafio revelavam exímios repentistas da métrica e da rima, sem nunca terem estudado poesia; os cachos vindimados por entre a folhagem que tantos beijos roubados testemunhara, sempre que a linguagem do desejo falara mais alto do que as cepas retorcidas rente ao chão; a pisa da uva nos lagares onde os homens, numa cadência de marcha militar, podiam sentir a embriaguez do mosto; a apanha da azeitona por entre cantares que ajudavam a aquecer as mãos engadanhadas pelo frio: “A azeitona já está preta/ já se pode armar aos tordos/ Diz-me lá, ó cara linda, como vais d’amores novos”.

Sem me dar conta, etnografia, literatura e figuras de estilo abriam-me janelas de conhecimento rasgadas por seres com poucos anos de escola. Depois, foram-me contando os seus sonhos, a vontade de sair, de explorar mundos diferentes daqueles em que haviam vivido limitados pela capacidade de irem mais longe. Analfabetos de aprendizagens fechadas em programas curriculares, falavam-me de ambição, da construção de utopias, de arquitetar futuros risonhos para os filhos que haviam de chegar, numa tela assente no cavalete das intenções por cumprir.

E se a nossa memória é a biblioteca de um tempo que temos sempre à mão, a minha foi-se abastecendo de saberes aprendidos também numa outra língua, sem estatuto, porque praticada de ouvido em brincadeiras de sanzala. Por isso, fomos viver para a cidade, onde mais tarde vim a conhecer o mundo das bibliotecas feitas de paredes, onde os livros cheiram a papel e nos observam a partir das prateleiras a que nem sempre chegava.

E sonhei um dia ver também meu nome inscrito na lombada de um livro que habitasse a prateleira de uma biblioteca, e me olhasse tal como durante tantos anos eu havia olhado para eles. Consegui, porque toda a vida ouvi as vozes da minha primeira biblioteca a dizerem-me que nunca desistisse dos sonhos.

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