Opinião

Páscoa suspensa

Sim, naquele ano privaram-me da primavera e de muitas coisas mais, mas eu, mesmo assim, floresci.

Gabriel Garcia Marquez, Amor nos Tempos de Cólera

 

Hoje é Sexta-feira Santa ou da Paixão, dia em que, depois de uma longa agonia, Cristo desceu da cruz, onde foi crucificado, para a derradeira viagem de regresso ao colo de sua mãe. Esta imagem de Jesus morto nos braços da mãe – conhecida por Pietá – é uma das mais conhecidas esculturas de Michelangelo, que bem representa a dor maior que é a perda de um filho. Talvez, por isso, se tenha tornado tão icónica e reconhecida.

Se, na hora da intimidade do nascimento, temos o encontro primeiro com a nossa mãe, já o decurso normal de uma vida dispensa esse mesmo encontro na hora final. Estamos preparados para assistir ao envelhecimento de pais e avós, para acompanhar o declínio a que a velhice os condena, até ao dia em que os perdemos e deles nos despedimos para sempre, numa aceitação resignada de que foi mais um ciclo que se fechou. O inverso já não é considerado aceitável, e lidamos muito mal com a ideia de poder vir a perder um filho, do adeus final, porque, para nós, os nossos filhos são sempre imortais. Não foi o caso de Jesus que, tendo ressuscitado ao terceiro dia, fez com que a tradição cristã passasse a consagrar-Lhe esse dia como o da Páscoa da Ressurreição. De acordo com o calendário litúrgico, vamos celebrá-la mais uma vez.

A primeira em confinamento obrigatório, desde que temos memória de existirmos.

A primeira sem as tradicionais celebrações religiosas, porque já não tocam os sinos na torre da igreja, nem a rua é atapetada de alecrim e rosmaninho para, em cada aldeia, passar a procissão.

A primeira sem as numerosas reuniões familiares, vividas na intimidade de cada lar.

A primeira sem abraços, beijos, ou quaisquer outras formas de cumprimentos que traduzam manifestações de carinho a pedir contacto físico.

A primeira em que os afetos serão vividos à distância ditada pelas medidas de controlo sanitário, ou plasmados no ecrã de um suporte tecnológico ao nosso alcance, que nos devolverá a imagem e a voz dos que nos são queridos. Nem sempre com a

nitidez que lhes pertencem, mas desfocados pelas distorsões e cortes a que as emissões digitais estão condenadas.

A primeira sem a liberdade de sair, saudar, trocar amêndoas, ou cumprir a tradição de ofertar o folar ao afilhado.

A primeira em que não esconderemos os ovos pela casa para que os mais novos os descubram, ajudados pelas enigmáticas pistas que lhes vamos dando.

A primeira de mesa vazia porque falta gente para sentar à mesa, por mais que o Zé Luís Peixoto nos diga que seremos sempre os mesmos à mesa.

A primeira sem Dia de Pascoela, quando o Senhor Crucificado visitava e abençoava as casas que Lhe franqueavam a entrada.

A primeira do silêncio sepulcral, em que o adjetivo, originário de sepúlcro, pela primeira vez ganha corpo, alma e sentido, numa trindade nunca dantes conhecida.

A primeira sem o movimento das aves de arribação que, passageiras dos aviões que cruzavam os céus, também enchiam as estradas com estrangeiras matrículas da saudade.

A primeira em que todas as fronteiras ergueram muros de controlo, e barraram a entrada aos regressos agendados.

A primeira em que, para bem de todos, fomos obrigados a renunciar a quase tudo que fazia parte do nosso quotidiano, até de sentir o cheiro da primavera. Mesmo assim, como nos diz Gabriel Garcia Marquez, não deixámos de florir.

O mesmo acontecerá com a Páscoa.  As palmas que, no passado Domingo de Ramos, floriram dentro de nós, hão-de ganhar flor numa próxima Páscoa – agora suspensa e adiada – que ninguém nos poderá roubar.

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