Opinião

O que dizem os teus pés?

“É mais que uma ilha – é uma estátua erguida até ao céu e moldada pelo fogo –, é outro Adamastor como o do cabo das Tormentas. “.  Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas. Foto: DR

 

Assim que nos aproximamos da Ilha, ele ali está, imponente, à nossa espera, orgulhoso por dominar um espaço que ganhou o seu nome – Pico. Todas as ilhas dos Açores são designadas por uma cor, e a esta coube o cinza, o tom que melhor traduz a nudez da vegetação e o domínio das rochas vulcânicas. A montanha nem sempre se mostra por inteiro, obrigando-nos a um jogo de escondidas alimentado pelas nuvens que, ora encobrindo o seio, ora a cintura, nos convidam à procura dos melhores ângulos. Quando a fixamos limpa e luminosa, conseguimos vê-la aqui e ali atapetada de castanhos e verdes que mascaram a aridez da lava de que é feita. Daí a ilusão, expressa em monólogos interiores, de que seria fácil subi-la.

Aconteceu comigo, desde a primeira hora. Olhava-a e interrogava-me, interrogava-me e olhava-a, num diálogo de dúvidas a que sempre respondi ser capaz. O guia, a quem tivera de dar o nome e a data de nascimento para efeitos de inscrição, não disfarçou a dúvida quando soube a minha idade. Tentei tranquilizá-lo, invocando, do alto do meu convencimento, as minhas longas caminhadas diárias e uma ida recente a Fátima a pé.

No dia combinado, lá estávamos às duas da manhã na casa da montanha, preparados para a subida. Havíamos escolhido o percurso da noite, porque queríamos assistir ao romper do sol lá em cima. Por isso, além dos bastões, recebemos os frontais que, na noite cerrada, nos iluminariam o caminho. O guia seguia à frente, passos leves de bailarina que conhece bem o palco por onde se move. E nós íamos colocando os bastões nos mesmos lugares onde ele fixava os seus, pisando as mesmas pedras, ganhando o mesmo impulso, numa tentativa de lhe seguir a cadência da passada. Chegados à Furna Abrigo, disse-nos sem cerimónia: “Bem, eu não vos quero desiludir, mas este percurso é para ser feito em 20 minutos e nós já levamos meia hora”.

Reduzidos a seis pontos luminosos (sete com o guia), continuámos a caminhada, tateando com os pés a irregularidade das pedras de lava na escuridão da noite, que nos devolviam a leitura do caminho – muito agreste e sempre a subir. Os casacos à cintura (que fomos obrigados a despir) eram as testemunhas do esforço que a íngreme inclinação exigia. A dois terços do percurso, aquilo que não desejávamos aconteceu: uma inesperada chuva miudinha começou silenciosamente a molhar-nos o corpo. Vestimos novamente os casacos, assertoados numa vontade de vencer diretamente proporcional ao frio que sentíamos. O guia comentava que fora imprevisível, mas que às vezes acontecia. E nós, por azar, fizemos parte daquele “às vezes” com que a montanha troca as voltas a quem a desafia. Chegámos à cratera, momento de largar mochilas e bastões que ficam à espera da descida. Seguem-se os escassos metros que faltam até ao Piquinho. Acuso cansaço, o ritmo cardíaco acelera, e peço uma pausa para recuperar o fôlego. Espera-me uma escalada pura e dura e, se até ali já me socorrera de ajudas pontuais, dali em diante seria o meu neto a valer-me. À minha frente, vai-me dando a mão para, com um impulso forte, me ajudar a subir. Partes há em que, literalmente, vou de gatas, agarrada às rochas e arrastando-me por cima delas.

Por fim, a apoteose – o marco final, o Piquinho. Lembrei-me do locutor que termina as entrevistas com a pergunta “O que dizem os teus olhos?”, e apeteceu-me perguntar “Aida, o que dizem os teus pés?”

Eles dizem-me que a prova foi penosa, mas que, a partir de agora, poderei proclamar que, apesar da idade, subi a pulso e passo esta estátua erguida do fogo, vergada ao deslumbramento com que me seduziu desde o primeiro encontro.

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