Opinião

O nosso tempo

"Se não tivéssemos memória, seríamos eternamente crianças acabadas de nascer" - Cícero.

Em 26 de Julho próximo, dia de Santa Ana, celebra-se em Portugal o Dia dos Avós. Do CLDS 4G (Contratos Locais de Desenvolvimento Social Quarta Geração) do Sardoal, recebi um convite para participar numa iniciativa intitulada “No Nosso Tempo”, que consiste em fazer um vídeo/filme sobre um tema que “os netos gostariam de ouvir acerca de um assunto que hoje é visto de forma diferente”.

 

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“Durante o tempo em que frequentei a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a máquina de escrever era a minha ferramenta principal, testemunha de tantos trabalhos batidos noites dentro, enquanto meus filhos dormiam,” Aida Batista.

 

Considerando que 24 anos me separam do dia em que pela primeira vez fui avó, foi-me fácil descobrir um episódio que nenhum dos meus netos terá oportunidade de vivenciar. E de que me lembrei eu? Da forma como tive de escrever a minha tese de licenciatura.

Durante o tempo em que frequentei a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a máquina de escrever era a minha ferramenta principal, testemunha de tantos trabalhos batidos noites dentro, enquanto meus filhos dormiam. Metida na caixa de origem, ainda a guardo, muito leve e fácil de transportar, sempre que as exigências do calendário letivo ditavam uma mudança de poiso. Sem teclas de corrigir, nem apagar, sem recurso a copiar e colar, os trabalhos eram todos cuidadosamente escritos à mão, na versão definitiva, para depois serem datilografados. Eu, que nunca fizera um curso de datilografia, passei da fase de galinha a picar milho ao uso de mais dois ou três dedos, consoante a destreza que fui ganhando com a prática.

Fazer um trabalho entre 20 a 30 páginas era uma tarefa exequível para os parâmetros que eu já conhecia; escrever uma tese de 300 páginas, em que grande parte delas eram compostas de colunas e quadrículas – previamente traçadas à mão com régua e esquadro – depois preenchidas com os dados que eu havia recolhido e sitematizado, já se apresentava com outros níveis de exigência. O que me limitava não era a incapacidade de cumprir a tarefa, mas a exiguidade de tempo que teria para a cumprir, dado que os prazos de entrega não se compadeciam com a lentidão da minha resposta.

Além de precisar de alguém que percorresse as teclas a uma velocidade que eu não dominava, também precisava de uma máquina de escrever mais moderna e de outro tamanho. Pus-me à procura de ambos – datilógrafo e máquina – que me foram sugeridos por aquele que, mais tarde, viria a ser o meu segundo marido. Havia uma empresa, conhecida como Lagar dos Paulinos, em cujo escritório existia uma máquina elétrica das mais modernas para a época. Na Câmara Municipal, trabalhava o senhor Fernando Rosa – hoje com 81 anos – que, além de competente datilógrafo, era tão rápido a escrever que nem precisava de olhar para o teclado. O escritório da empresa fechava às 17.30, hora a que também o Sr. Fernando Rosa, funcionário público, concluía o seu dia de trabalho. 

Após algumas negociações, ficou combinado o seguinte: assim que a empresa fechasse, eu iria buscar a máquina emprestada, levando-a para minha casa; entretanto, o Sr. Fernando Rosa iria lá ter para trabalharmos até à hora do jantar. Eu tinha as folhas preparadas, ele metia-as na máquina, eu ditava e ele escrevia, tarefa em que nos ocupámos seguramente mais de um mês. No dia seguinte, eu teria de, bem cedo, ir religiosamente devolver a máquina, para que tudo estivesse pronto antes de a empresa abrir ao público.

Nunca contei aos meus netos que foi devido à disponibilidade de uma empresa e à generosidade de um homem bom que consegui entregar a minha tese a tempo. Eles também nunca a viram, mas, depois deste exercício de memória que lhes é dedicado, é com grande satisfação que dou por concluída a travessia de dois tempos – o meu e o deles – que nos permitem estarmos agora todos sintonizados neste que é “O Nosso Tempo”.

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