Opinião

O luto pode ser branco

A véspera é o que trazemos a cada dia que vamos vivendo, a vida é acarretar vésperas como quem acarreta pedras. José Saramago

Há muitos, muitos anos, tantos que se perdem na memória dos tempos, havia um país em formação. Na sua fase embrionária, tentava estender-se para Sul, em busca do mar que lhe serviu de fronteira. Para o conseguir, teria de conquistar um território – Algarve – na posse dos Mouros, dominado por um rei de tez morena e muito garboso, como devem ser todos os reis que habitam as lendas. Esse rei veio a casar-se com uma princesa do Norte da Europa, de pele muito alva e olhos claros, a quem chamavam a Bela do Norte.

Tudo fazia prever que a princesinha, tornada rainha, se sentiria muito feliz a viver num sumptuoso palácio, na companhia do seu muito amado marido. Mas não! À medida que os dias iam passando, apoderou-se dela uma imensa nostalgia que a fez deixar de sorrir. O rei não compreendia a razão de tão profunda tristeza. A rainha não o queria magoar, mas um dia ganhou coragem e segredou-lhe: “Sinto a falta da alvura dos campos cobertos de neve da minha terra!” Um rei tudo pode, mas mudar o clima é proeza que não está ao seu alcance.

O receio de perder a amada, porém, fê-lo dar voltas à imaginação e encontrar uma solução – ordenou que à volta do palácio se plantassem amendoeiras. O rei contava os dias, na ânsia de que a natureza se encarregasse de fazer o milagre da primavera. Assim que as árvores se cobriram de flores, pediu à sua amada que o acompanhasse até à varanda da torre mais alta do castelo. Esta, ao contemplar a brancura dos campos floridos lembrou-se do seu país distante, e voltou a sorrir de contentamento, devolvendo ao marido a alegria que ele antes lhe conhecera. Dizem os que naquela época viveram que, chegada a primavera, todos os anos ela se quedava horas sem fim a contemplar as amendoeiras em flor, transformadas em neve da sua terra.

Anos mais tarde, alguém maravilhado com aquele espetáculo, decidiu transpô-lo para o Norte, onde a população da região, em despique com a do Sul, passou a fruir da mesma beleza encantatória das amendoeiras em flor. Mas cedo percebeu que a beleza da natureza rende, e começaram a ser organizadas excursões para que outros pudesem também usufruir da mesma ilusão que alimentara a alegria da Bela do Norte. Num sábado de março de 2001, um grupo de 70 pessoas vivia a véspera de mais um passeio de domingo, destinado a ver as amendoeiras. A alguns ainda foi sugerido que se deixassem estar em casa. Havia os pessegueitos em flor ali tão perto, quase a mesma coisa! Mas a véspera estava já marcada por aquela teimosia. E o domingo já não foi véspera de mais vida nenhuma, porque tudo acabou ali, entre as duas margens de um rio que passou a leito de morte. E deixou de se chamar Douro para ser Lete, cujas águas, segundo a mitologia grega, leva o esquecimento às almas dos mortos.

Naquele domingo, não houve passagem para a outra margem, porque nem todas as almas puderam pagar a Caronte, o barqueiro dos infernos. O óbulo exigido atingiu um preço demasiado elevado: a dor e a angústia dos que, tantos anos depois, ainda esperam que as águas lhes devolvam os despojos das vidas perdidas.
Recordo hoje as vítimas da queda da ponte Hintze Ribeiro, porque também eu irei visitar as amendoeiras em flor, num programa organizado pela CP, Comboios de Portugal.

Tenho a certeza de que, quando as contemplar, hei de concluir que a cor do luto também pode ser o branco.

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