Miguel Matos

Pelos meus filhos…

Créditos: JN

É de especial mau gosto que, para branquear a sua própria incúria, Montenegro instrumentalize desta forma os seus filhos.

Luís Montenegro não pára de repetir que foi pelos seus filhos que criou a empresa Spinumviva. Fá-lo porque sabe que esse é um argumento que gera empatia – qualquer pai quer e deve poder ajudar os seus filhos. É, por isso, de especial mau gosto que, para branquear a sua própria incúria, Montenegro instrumentalize desta forma os seus filhos.

Hoje é claro que a empresa não serve para gerir o património que o primeiro-ministro herdou da sua mãe nem como início de carreira dos filhos. Ela limita-se a subcontratar serviços de proteção de dados a outros juristas, para clientes todos eles angariados por Montenegro. É apenas ridículo que nos queiram agora enganar com uma suposta gerência da empresa pela esposa educadora de infância ou pelos filhos, estudante e recém-licenciado em gestão. Para lá de qualquer subterfúgio, é o próprio Montenegro que está a receber essa avença.

É razoável, sim, questionar a atividade da empresa. Afinal, Luís Montenegro omitiu os seus clientes da declaração de interesses, apesar da lei o obrigar a revelá-los (artigo 13 n. 3 b) i) do Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos). São avenças que tiveram o seu melhor ano em 2022, coincidindo com a saída de Montenegro para presidente do PSD em julho. São clientes com fortes ligações ao Estado, incluindo uma concessão de jogo que vai a concurso este ano. Apenas o escrutínio e respetivo esclarecimento pode restaurar confiança e prevenir situações de conflito de interesses.

Infelizmente, quem contratou a Spinumviva e porquê são mesmo as questões mais ligeiras que ainda estão por esclarecer. A Ordem dos Advogados ou o Ministério Público devem esclarecer se os serviços prestados não são atos próprios de advogados. Se forem, podemos estar também perante um caso de procuradoria ilícita e de fuga à transparência fiscal, o que permite poupar em IRS uma boa maquia. Por fim, não pode ser só o pequeno empresário que tem de responder pelas faturas que regista em nome da empresa. Importa esclarecer se algum dos 284 mil euros de despesas da empresa foi de natureza pessoal. Tudo isto é possível fazer sem sequer começar a questionar a compra a pronto pagamento e com recurso a várias contas abaixo do limiar declarativo de dois imóveis por 715 mil euros numa das zonas mais caras de Lisboa.

Montenegro podia ter esclarecido tudo voluntariamente. Não o fez. Escolheu o silêncio até à moção de censura, dando-lhe uma dimensão que de outro modo não teria. Apresentou uma lista de rendimentos que ninguém pediu e que não tem relevância nenhuma. Perante novas manchetes, a própria empresa comunica algumas novas informações, mas ainda assim aquém do mínimo que todos pediam. Por fim, faz uma declaração ao país para desafiar os partidos a uma moção de confiança, em vez de responder a dúvidas legítimas.

Não preciso de dizer que é um gritante erro de gestão política. Desde a era Clinton que se ensina uma máxima em gestão de crises – “tell it early, tell it all, tell it yourself”. A saída a conta-gotas de informação, mesmo que o mais danoso já tenha saído, é um lento desgaste da credibilidade do governo e da democracia. Não responder a perguntas, nem sequer as admitir à imprensa, é um gesto de arrogância em claro contraste com o anterior inquilino de São Bento. Para compor o ramalhete, arrastar os ministros para a conferência de imprensa e para os estúdios de televisão pode ter sido uma eficaz prova de lealdade interna mas mostrou ao país um chefe do executivo inseguro, frágil e diminuído.

No final do dia, o PSD devia perceber que são os únicos na sala a gritar que isto é perseguição, strip-tease ou calúnia. Pegar neste caso para dizer que um político hoje não pode ter atividade empresarial no passado ou até no presente é um insulto para tantos que compreendem os sacrifícios que a vida pública exige e uma piada para os que, agindo dentro dos limites, vêm como Montenegro ultrapassou-os.

Em verdade, pouco importa se a Spinumviva existe para enriquecer Montenegro ou (convenientemente) os seus filhos. Pelos meus filhos, pelos nossos filhos, quero viver numa democracia onde os políticos possam ter a sua vida mas sejam justamente escrutinados, que saiba separar bem o trigo do joio e onde, como disse António Costa a anunciar ao país a sua demissão, “a dignidade da função de primeiro-ministro e a confiança que os portugueses têm de ter nas instituições [seja] absolutamente incompatível com o facto de alguém, que é o primeiro-ministro, estar sob suspeição”.

Miguel Matos/MS

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