Os espantalhos e o espanto no debate pré-eleitoral
Castro Almeida ameaçou com o fim das contas certas, perguntando onde é que o PS vai “inventar o dinheiro”? A resposta é simples: ao mesmo sítio que o PSD.
A disputa de ideias para a campanha eleitoral já começou em força. Começados os debates, apenas o PS, entre os partidos com assento parlamentar, apresentou até agora um programa eleitoral novo (que tive a honra de coordenar). Depois da sua estrondosa apresentação no passado sábado, onde foram destacadas um conjunto de 10 medidas muito populares, sobretudo em relação ao custo de vida dos portugueses, não tardou a vir uma resposta assustada da AD.
Luís Montenegro tentou associar Pedro Nuno Santos a José Sócrates e a “dar tudo a todos”, numa tentativa ridícula de criar uma espécie de versão portuguesa da Lei de Godwin. Já Castro Almeida ameaçou com o fim das contas certas, perguntando onde é que o PS vai “inventar o dinheiro”? A resposta é simples: ao mesmo sítio que o PSD.
Infelizmente, em Portugal, não temos uma tradição de um debate público rigoroso. As estatísticas são torturadas até que encaixem na narrativa, as políticas públicas não são avaliadas nem postas em perspetiva comparada e, que horror, não há uma noção real do quanto é que cada opção custa. Isso impede-nos de realmente aferirmos a credibilidade do que cada um propõe e como é que isso vai afetar o nosso bolso. Na outra ponta da sala encontramos os Estados Unidos que, não obstante as suas péssimas políticas orçamentais, ao menos dispõe de uma cinquentenária “UTAO” que mantém atualizada para benefício de todos e até dos políticos que estão a formular propostas, uma lista de “opções orçamentais” com os impactos devidamente quantificados.
Como canta Bowie, a este respeito, somos “absolute beginners”. Castro Almeida, que tutela os fundos europeus, teve o desplante ou o desconhecimento de que a execução do PRR implicará, necessariamente, um défice em 2026. Já quanto ao custo total das medidas do PS, Montenegro teve de bater em retirada. Se no sábado o problema era o custo das medidas, na segunda-feira já era que elas “distribuem riqueza sem a criar”, ao contrário do que supostamente fariam as do PSD.
Afinal, os portugueses conhecem e confiam na capacidade do PS fazer contas certas. Contas feitas, as medidas do PS têm um impacto orçamental de 1.744 milhões de euros. Ora, se segundo a UTAO, com valores de 2025, cada descida de um ponto percentual (pp) do IRC custa cerca de 420 milhões, as medidas do PS encontram-se ainda significativamente abaixo do eventual custo de uma descida do IRC de 20 para 15% (2102,5 milhões). Acresce a isto que o meu homólogo, coordenador do programa eleitoral da AD, Joaquim Miranda Sarmento, já prometeu que, além do IRC, vão apresentar uma “redução do IRS ambiciosa”. Se Montenegro e companhia ainda tiverem vergonha, não quererão passar-nos por parvos de que para uns há mundos e fundos e, para o outro, não há dinheiro nenhum.
Ultrapassada a contabilidade, podemos e devemos focar-nos no mérito das medidas. Podemos começar sobre o facto de que, enquanto o peso dos impostos diretos, tendencialmente mais progressivos, são inferiores em Portugal à média da UE (10,7% vs. 13,2%, respetivamente), os impostos indiretos, tendencialmente mais regressivos pesam mais em Portugal do que na UE (14,5% vs. 12,9%, respetivamente). A seguir, podemos recordar que, segundo o Banco de Portugal, o IVA Zero foi eficaz, tendo a redução do imposto sido transmitida na sua quase totalidade ao consumidor (estimando uma média de 75% para a globalidade do período em que esteve em vigor). Por fim, podemos recorrer à mesma instituição para referir que, por cada 1pp descida do IRC, a atividade económica apenas será estimulada se nenhum dos ganhos forem reinvestidos nas famílias mas, outrossim, na capitalização das empresas – mesmo assim gerando uns pífios 0,1pp de estímulo à atividade económica. Estes resultados são consistentes com o estudo de Pedro Brinca et al. para a FFMS, que aponta para um impacto inferior a 0,2pp por cada ponto de descida do IRC, não se afigurando que a medida se “pague a si própria” no curto-médio prazo, como é frequentemente alvitrado pela AD.
Nestas eleições, podem-se levantar os espantalhos que se quiser. Os factos económicos, todavia, apontam em sentido inverso. Está em causa a opção entre duas políticas compatíveis na sua dimensão orçamental mas com impactos muito diferentes no rendimento das famílias e no crescimento da economia – uma redução do IVA com ganhos certos para todos ou uma redução do IRC com ganhos dúbios para alguns, como tão eloquentemente colocou Daniel Oliveira no Expresso.
Se conseguirmos superar este grau zero do debate pré-eleitoral, poderemos, como nos sugere Tolentino Mendonça, “reencontrar o espanto (…) o contacto (consciente, fulgurante, desarmado, rendido) com a vida maior que nós, a vida em aberto, não predeterminada”. E que falta faz o espanto ao mundo, à política e à vida!
Miguel Costa Matos/MS
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