O ilusionismo orçamental

Esta semana inicia um mês de intenso debate orçamental, em que os trabalhos parlamentares sobre todas as demais matérias ficam suspensos. Na medida em que as políticas públicas habitualmente têm expressão orçamental, às vezes nem reparamos que estamos a discutir cifras e não só palavras. Num certo nível, tudo cabe e tudo é anunciado num Orçamento do Estado. O pior é mesmo esse, quando tanta filosofia não passa daí e o que se prometeu fica muito longe do que é executado. Infelizmente, no próximo ano de 2026, é para onde caminhamos.
O problema começa logo no cenário macroeconómico que o Governo traça. Desde o crescimento do PIB ao défice, não é só o Governo da AD que desmente o otimista programa eleitoral da AD. Na verdade, nenhuma outra entidade prevê que o Governo possa obter um excedente orçamental. O Conselho de Finanças Públicas alerta mesmo para “uma possível sobrestimação do comportamento real da economia para 2026”, correspondente a menos 650 milhões em receita, a que acresce em despesa um valor de 1650 milhões acima do previsto.
Isto não é brincadeira nenhuma. Apesar de Portugal se encontrar bem cotado nos mercados financeiros, o nervosismo quanto a soberanos (nomeadamente, a França) existe e a queda em situação de défice ou a violação dos limites de despesa primária líquida podem, muito bem, merecer uma súbita reapreciação dos mercados financeiros. Isso é especialmente verdadeiro quando se evidencia o descontrole da despesa primária líquida. Inicialmente prevista crescer 5,0% em 2025, chegou a antecipar-se um crescimento de apenas 3,4% em abril. Já neste processo orçamental, no espaço de apenas uma semana, o Governo passou de uma previsão de 4,2 para 5,5%.
Está declarado o “fim de festa”, como diz Óscar Afonso, diretor da Faculdade de Economia do Porto e recente candidato da AD. Há várias coisas que indicam que este será um primeiro ano de grande contenção, como por exemplo os limites menores para a aquisição de serviços, o aumento inexplicável em quase 50% do saldo orçamental das autarquias ou, ainda, a não-atualização das transferências para a União Europeia. Também a receita com a venda de imóveis tem sido denunciada como um potencial risco no plano da receita, enquanto o Ministério não qualifica como é que tenciona evitar a consideração em 2026 da descida do IVA sobre a construção ou a descida do IRS para arrendatários e senhorios. Este pacote fiscal dirigido à habitação e orçado em cerca de mil milhões de euros, foi anunciado a 26 de setembro. Mas pode ter a certeza que o assunto não passou impune e que vai deixar marcas num já exíguo exercício orçamental.
Tudo isto foi preciso fazer para “martelar” os números para haver excedente. Não ficaram por aqui. Não é por acaso que a despesa corrente do Ministério da Saúde prevê um corte, em nada explicado por eficiências e poupanças. O mesmo se poderia dizer do corte de 1500 milhões na “despesa verde”, de 400 milhões no Orçamento da Agricultura e no travão ao poder local, que passa de um crescimento de 12,3 para 1,9%, abaixo da inflação.
É evidente que um dos sacrificados destes furos no cinto será o investimento público. 2024 já foi o pior ano da última década em termos da taxa de execução deste investimento. 2025 promete ser um ano com dificuldades iguais ou maiores, mas o cenário para o próximo ano é mesmo dantesco, com uma quebra de 4% no investimento PRR e de 6% no investimento em infraestruturas e habitação. Também a previsão orçamental do investimento nas escolas desapareceu por completo. Não é por acaso que o investimento militar (1200 milhões de euros) está colocado no obscuro capítulo 60, onde não se reflete na atual previsão do saldo.
Perante este imbróglio, o Governo teve uma bênção – foi eleito há pouco tempo e terá, no próximo ano, o último ano de execução do PRR. Estes são motivos bastantes para haver estabilidade política na aprovação do Orçamento do Estado. Não quer isto dizer que o PS não fará oposição ao Governo e que Montenegro, Miranda e associados queiram fazer do Orçamento aquilo que não é. Afinal, para tentar preservar a bonita expressão de que “este é o segundo orçamento que não aumenta impostos”, a AD precisa de fingir que não irá aumentar os impostos sobre os combustíveis.
A consideração da subida do ISP e do pacote fiscal da habitação fora dos quadros do Orçamento do Estado permitem levantar dúvidas sobre o cumprimento da Lei de Enquadramento Orçamental. São a prova de que se pode ter tirado “cavaleiros orçamentais” mas também se perdeu transparência e visão de conjunto. Noutros anos, chamar-lhe-iam desorçamentação e diriam que é grave. A mim e por nós, o mínimo é chamar-lhe ilusionismo orçamental.
Miguel Costa Matos/MS




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