Francisco, o coerente

Nestes anos, avançou-se na maneira como a Igreja encara a comunidade LGBT ou as pessoas divorciadas, embora ficando claramente aquém tanto nessas matérias como no papel da mulher ou no voto de celibato.
A morte do Papa Francisco abalou o mundo. Depois de semanas internado, agora que parecia melhorar desapareceu e logo quando a sociedade mais precisava dele. Por estes dias, até quem achava que ele prestava “um mau serviço ao cristianismo” vê-se obrigado a reconhecer a sua “marca inspiradora” e a pedir que se torne um exemplo a seguir. Muitos outros falarão da sua liturgia espiritual – a fraternidade, a misericórdia, a empatia. É bom que encontremos consenso nesses valores, no meio do individualismo e polarização que contaminam os nossos dias. Seria importante, aliás, que os transportássemos connosco para lá deste momento de luto por Jorge Bergoglio.
Francisco nunca quis, porém, ser apenas um líder espiritual. Não se furtou de ser um líder político mundial, não só no plano do ecumenismo religioso, promovendo diálogo entre confissões religiosas, mas participando ativamente na alta política internacional. Foi assim ao tornar-se o primeiro Pontífice a participar numa reunião do G7, onde alertou para os riscos da inteligência artificial, e no compromisso que teve com a paz em diversos conflitos, a começar pela Ucrânia e por Gaza, para onde ligava diariamente.
Entendia o papel que ele e os fiéis podiam ter na sociedade. Por isso, apelou à participação política ativa dos católicos como “peregrinos da esperança” e “profetas e construtores do futuro”, e não “administradores, equilibristas do presente”. Para ele, a fé tinha de ter coerência com as nossas ações individuais e, sobretudo, com a nossa intervenção cívica. Num gesto quiçá inusitado para um líder religioso, disse que era preferível ser ateu ao gesto tão hipócrita quanto comum de ir à Igreja e odiar os outros.
Em contraste com uma Igreja que noutras épocas foi tão complacente com a morte, o Papa Francisco ergueu a sua voz várias vezes para que o Mediterrâneo não seja um “mar da morte”, considerando um “pecado grave” não oferecer ajuda às embarcações de migrantes e visitando por diversas vezes as ilhas de Lampedusa e Lesbos. Mais recentemente, escreveu aos bispos americanos para que estes combatessem Trump nesta frente. Mesmo contra os mais poderosos, nunca faltou coragem ao Papa para lhes fazer frente.
Naquele que é o maior combate dos nossos tempos – as alterações climáticas – Bergoglio também não esteve por menos. A isso dedicou a sua segunda encíclica, Laudato Si, e tanta da sua intervenção pública, desmentindo negacionistas e exortando a maior ação. Não se limitou a recursos retóricos, tanto no clima como na crítica que fazia ao capitalismo. Criou o Conselho para o Capitalismo Inclusivo, coligando-se com líderes empresariais para tentar transformar os seus modelos de negócio. Participou com outros líderes progressistas mundiais nos esforços para criar um imposto global sobre os super-ricos e as multinacionais. Tudo isto enquanto instigou novo pensamento económico e filosófico, apoiando o trabalho de Mariana Mazzucato e publicando a encíclica Fratelli Tutti. O primado da dignidade da pessoa humana face às leis do mercado foi, aliás, clara quando defendeu que se deveria suspender a propriedade intelectual das vacinas contra a Covid para que pudessem ser mais rapidamente distribuídas.
A coerência não se faz só para “fora de casa”. Faz-se também para dentro. O Papa Francisco foi “implacável” a lidar com os abusos sexuais na Igreja. Reformou a administração da Santa Sé. Naquele que esperava ser a sua grande marca, Bergoglio projetou uma igreja sinodal, isto é, de reflexão e diálogo. Com o mandato renovado há apenas um mês, este espaço de discussão contou de forma inédita com o direito de voto não só para homens como também para mulheres leigas. Nestes anos, avançou-se na maneira como a Igreja encara a comunidade LGBT ou as pessoas divorciadas, embora ficando claramente aquém tanto nessas matérias como no papel da mulher ou no voto de celibato.
Se fossemos dar um cognome ao Papa Francisco, não destacaria nenhuma das suas muitas virtudes carismáticas. Para mim, seria o coerente. Até ao fim, desde o simbólico ao substancial, Jorge Bergoglio tentou reformar a Igreja para que ela cumprisse com o amor ao próximo que há 2000 anos Jesus Cristo quis ensinar. Honrar a sua memória é também nós sermos coerentes, com estes valores não só individualmente mas na nossa vida política, económica, social e cultural. Com sorte, da Capela Sistina, teremos em breve fumo branco sobre um novo pastor para nos continuar a guiar o caminho.
Miguel Costa Matos/MS
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