Opinião

Intermitências de lucidez

Ao meu pai, por ter ousado partir do chão onde nasceu.

Terça-feira é o dia limite para enviar a crónica da semana. Habitualmente, escrevo-a de véspera porque gosto de deixar o texto repousar uma noite.
Desta vez, faço-o no próprio dia, por coincidência Dia do Pai em Portugal. Há muito perdi o meu, como acontece com quase todos os que são da minha idade.
Recordo com saudade muitos dos momentos que partilhámos, mas em especial aqueles em que se inverteram os papéis e eu, em vez de filha, fui mãe. Em busca de um texto que, nessa altura, lhe dediquei , reproduzo-o hoje, com alguns cortes.

– Mãe, ó mãe! Mãe, ó mãe!
– Vou já… só um bocadinho! – respondo-lhe.

Estou a lavar a loiça do pequeno almoço. É o tempo de passar por água o prato onde lhe preparei a papa, enxugar as mãos e dirigir-me ao quarto. Fixa-me com o olhar penetrante, de quem atravessa décadas de passado, e censura-me:

– Então a mãe deixou aqui o filho sozinho?!
– Não, não o deixei sozinho… estava ali na cozinha a preparar umas coisas.
– O que esteve a fazer?

Respondo-lhe como se responde às crianças, que é como o vejo agora: indefeso e completamente entregue aos nossos cuidados. Tombo-o para o lado, aconchego o edredão, ajeito-lhe a cabeça na almofada e peço-lhe que descanse. Vesti a pele de mãe, entrando no jogo intermitente das confusões mentais, resultantes do acidente vascular cerebral que lhe deixou lesões profundas. «De velho se torna a menino», mas o adagiário popular não nos prepara para esta cruel realidade.

Sento-me ao computador. Estou em cima da data para enviar o meu resumo para o IV Congresso Internacional “A Vez e a Voz da Mulher Portuguesa no Brasil e Outros Lugares”. Começo a escrever e avanço pelo esqueleto do texto.

– Graça, ó Graça! Graça, ó Graça!

Vou dar com ele sentado na cama, o olhar vazio de referências.

– Ó Graça, onde estou?
– Em casa da sua filha! Da Aida, Sr. Baptista!

É neste novo papel que lhe dou a mão e pergunto se quer alguma coisa.

– Leve-me para a cama… quero descansar.

Treinada neste jogo de faz-de-conta, mudo a almofada de lugar, também ela habituada a estar ora a norte ora a sul, neste desnorte de posições, porque a cama deixou de ter cabeceira e pés. Reduzida a um retângulo, as duas faces alternam conforme a posição que o corpo pede na busca do conforto. Aninhado na nudez do silêncio, entrega os olhos ao descanso.

– Tina, ó Tina! Tina, ó Tina! Tiiii…
– Vou já, pai!

Olho para as horas. Conheço bem o ritmo do seu relógio biológico. O que me espera exige o tempo das imagens rodadas em câmara lenta. A doença vem-lhe agravando todos os movimentos. Pede para ficar sozinho. O sismo que lhe abalou a mente não conseguiu apagar a palavra pudor, registada num cantinho qualquer do subconsciente a exigir preservação da intimidade. Segue-se o banho quente que lhe devolve um corpo a cheirar a dignidade. Já vestido, faço-lhe a barba, esticando bem todas as pregas que a magreza acentuou.

– Aonde vamos?
– Sentar um bocado no sofá!

Enquanto lhe passo o creme e o refresco com um perfume leve, solto frases aromatizadas de ilusões. Cubro-lhe as pernas com uma manta axadrezada, e para que fique bem recostado, coloco almofadas a preencher os vazios do desconforto.

– Obrigado, minha senhora! – agradece.

Em poucas horas fui sua mãe, Graça (a senhora que cuida dele), Tina (uma das minhas irmâs) e, até ao fim do dia, sofrerei outras metamorfoses.”
Numa delas, ele há de reconhecer-me e poderemos estabelecer diálogos de uma lucidez a toda a prova, em especial se falarmos do chão africano onde traçou o futuro dos filhos que, depois de mim, vieram a nascer.

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