Inês Carpinteiro

Do inconformismo à liberdade

 

Projeto Daniel Louro

 

“Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade” foi um dos sinais que, carregado de coragem, deu força ao inconformismo português de quem não queria viver a vida de boca calada. Um Portugal cansado, espezinhado, mas com audácia viu nos cravos vermelhos a certeza de revolução.

Um Estado Novo que já cheirava a velho, impunha o lema de “Deus, Pátria e Família”. Para garantir a decência, as crianças eram separadas por género na escola, limitando o seu contacto. E nas ruas, os casais mantinham a distância, já que qualquer sinal de afeto que pudesse ser considerado impróprio dava direito a multa, detenção e os homens ainda saiam da esquadra de cabeça rapada. Algo tão banal como dar as mãos, chegava a custar dois escudos e meio. Quem tivesse filhos e não fosse casado, ficava registado que eram filhos de ‘pai incógnito’. E quem casasse pela igreja, não tinha direito ao divórcio.

Num país pobre, reinava o analfabetismo, e a progressão de estudos estava restringida à elite. Contudo, quem frequentava a escola, aprendia realidades alternativas impostas por quem não queria deixar a grandiosidade do colonialismo morrer. Já Goa, Damão e Diu se tinham libertado dos portugueses e os manuais escolares continuavam a preservar o colonialismo. Enquanto isso, quem não tinha a sorte de ir para a escola, em vez de ser criança, trabalhava nos campos como gente grande.

As mulheres eram consideradas semi-pessoas, soterradas numa sociedade patriarcal e opressora. Só tinham direito a voto aquelas que tinham estudos mais avançados ou eram chefe de família por serem viúvas. Um marido controlava tudo, desde as autorizações para viajar até à correspondência. Até certas profissões acarretavam limites na vida pessoal. As enfermeiras, telefonistas ou hospedeiras não estavam autorizadas a casar. Já as professoras, poderiam fazê-lo, mas apenas com a aprovação do Ministério da Educação. Durante os anos 40 e com a chegada de refugiados da Segunda Guerra Mundial, Salazar viu comportamentos que o deixavam escandalizado, desde mulheres a irem sozinhas aos cafés, ao uso da minissaia, e para pôr fim à selvajaria e preservar o “mínimo de decência” rapidamente se obrigou o uso de biquíni que cumprisse os requisitos mínimos de cobertura do corpo feminino. Também os homens enfrentaram vários desafios, sendo o maior de todos a guerra colonial. Não existia liberdade de expressão e o associativismo era totalmente proibido. Qualquer reunião com mais de três pessoas gerava suspeita já que a lei da nação era não conspirar contra o Estado. Para garantir que isso não acontecia, até se proibiam os jogos de cartas nos comboios. Os estudantes envolvidos em atividades associativas eram suspensos, presos, até forçados a incorporar o regime militar e enviados para as colónias. Quando o fatídico dia chegava, de lutar numa guerra que não era deles, era só do ego, ninguém escondia o medo, há quem tenha fugido para a França e outros que não vissem saída senão enfrentar a miséria.
Quem ficava, não ficava muito melhor. Havia tanto dinheiro, quanto liberdade – para o cidadão comum, praticamente nada. Não havia salário mínimo, o patrão pagava o que queria e muitos idosos nem pensão de reforma tinham.

Portugal vivia amordaçado por uma ditadura implacável que não perdoava ninguém. Milhares de opositores foram presos, torturados e até assassinados pela polícia política. Outros viram-se sem emprego e obrigados a imigrar – não é coincidência que os portugueses estejam espalhados pelo mundo. A polícia infiltrava-se sorrateiramente na vida de todos e o inimigo podia ser o próprio irmão. Ter opinião, ou pelo menos dá-la em voz alta, era um luxo dos mais valentes, dos inconsequentes ou daqueles que já não tinham nada a perder. Aqui até a mendicidade era regulada, só podia pedir esmola quem tivessem caderneta a comprovar uma incapacidade física ou mental.

Os meios de comunicação eram tão vigiados que as notícias só podiam ser publicadas depois de serem lidas e autorizadas pelos Serviços de Censura. Proibiram-se também certos livros que se considerava trazerem más ideias – desde Bichos de Miguel Torga, ao Anticristo de Nietzche. Até a banda desenhada se viu escrutinada, os nomes tinham de ser aportuguesados e os super-heróis sempre que mostravam uma arma viam-se censurados.
O medo que algum produto estrangeiro entrasse no país para contaminar o regime era tanto que se proibia o uso do isqueiro, já que Portugal fabricava fósforos, e se proibia o consumo de Coca-Cola que na versão oficial se devia aos efeitos do alto teor de cafeína, mas que provavelmente se devia ao medo dos ares de modernidade.
A força de uns, garantiu a liberdade de todos. E sendo o 25 de abril de 1974 a prova da democracia, que tão dificilmente se ganha, mas que rapidamente se pode perder, sobra sempre uma coisa – o inconformismo de quem quer ter voz.

Inês Carpinteiro/MS

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