Do inconformismo à liberdade
“Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade” foi um dos sinais que, carregado de coragem, deu força ao inconformismo português de quem não queria viver a vida de boca calada. Um Portugal cansado, espezinhado, mas com audácia viu nos cravos vermelhos a certeza de revolução.
Um Estado Novo que já cheirava a velho, impunha o lema de “Deus, Pátria e Família”. Para garantir a decência, as crianças eram separadas por género na escola, limitando o seu contacto. E nas ruas, os casais mantinham a distância, já que qualquer sinal de afeto que pudesse ser considerado impróprio dava direito a multa, detenção e os homens ainda saiam da esquadra de cabeça rapada. Algo tão banal como dar as mãos, chegava a custar dois escudos e meio. Quem tivesse filhos e não fosse casado, ficava registado que eram filhos de ‘pai incógnito’. E quem casasse pela igreja, não tinha direito ao divórcio.
Num país pobre, reinava o analfabetismo, e a progressão de estudos estava restringida à elite. Contudo, quem frequentava a escola, aprendia realidades alternativas impostas por quem não queria deixar a grandiosidade do colonialismo morrer. Já Goa, Damão e Diu se tinham libertado dos portugueses e os manuais escolares continuavam a preservar o colonialismo. Enquanto isso, quem não tinha a sorte de ir para a escola, em vez de ser criança, trabalhava nos campos como gente grande.
As mulheres eram consideradas semi-pessoas, soterradas numa sociedade patriarcal e opressora. Só tinham direito a voto aquelas que tinham estudos mais avançados ou eram chefe de família por serem viúvas. Um marido controlava tudo, desde as autorizações para viajar até à correspondência. Até certas profissões acarretavam limites na vida pessoal. As enfermeiras, telefonistas ou hospedeiras não estavam autorizadas a casar. Já as professoras, poderiam fazê-lo, mas apenas com a aprovação do Ministério da Educação. Durante os anos 40 e com a chegada de refugiados da Segunda Guerra Mundial, Salazar viu comportamentos que o deixavam escandalizado, desde mulheres a irem sozinhas aos cafés, ao uso da minissaia, e para pôr fim à selvajaria e preservar o “mínimo de decência” rapidamente se obrigou o uso de biquíni que cumprisse os requisitos mínimos de cobertura do corpo feminino. Também os homens enfrentaram vários desafios, sendo o maior de todos a guerra colonial. Não existia liberdade de expressão e o associativismo era totalmente proibido. Qualquer reunião com mais de três pessoas gerava suspeita já que a lei da nação era não conspirar contra o Estado. Para garantir que isso não acontecia, até se proibiam os jogos de cartas nos comboios. Os estudantes envolvidos em atividades associativas eram suspensos, presos, até forçados a incorporar o regime militar e enviados para as colónias. Quando o fatídico dia chegava, de lutar numa guerra que não era deles, era só do ego, ninguém escondia o medo, há quem tenha fugido para a França e outros que não vissem saída senão enfrentar a miséria.
Quem ficava, não ficava muito melhor. Havia tanto dinheiro, quanto liberdade – para o cidadão comum, praticamente nada. Não havia salário mínimo, o patrão pagava o que queria e muitos idosos nem pensão de reforma tinham.
Portugal vivia amordaçado por uma ditadura implacável que não perdoava ninguém. Milhares de opositores foram presos, torturados e até assassinados pela polícia política. Outros viram-se sem emprego e obrigados a imigrar – não é coincidência que os portugueses estejam espalhados pelo mundo. A polícia infiltrava-se sorrateiramente na vida de todos e o inimigo podia ser o próprio irmão. Ter opinião, ou pelo menos dá-la em voz alta, era um luxo dos mais valentes, dos inconsequentes ou daqueles que já não tinham nada a perder. Aqui até a mendicidade era regulada, só podia pedir esmola quem tivessem caderneta a comprovar uma incapacidade física ou mental.
Os meios de comunicação eram tão vigiados que as notícias só podiam ser publicadas depois de serem lidas e autorizadas pelos Serviços de Censura. Proibiram-se também certos livros que se considerava trazerem más ideias – desde Bichos de Miguel Torga, ao Anticristo de Nietzche. Até a banda desenhada se viu escrutinada, os nomes tinham de ser aportuguesados e os super-heróis sempre que mostravam uma arma viam-se censurados.
O medo que algum produto estrangeiro entrasse no país para contaminar o regime era tanto que se proibia o uso do isqueiro, já que Portugal fabricava fósforos, e se proibia o consumo de Coca-Cola que na versão oficial se devia aos efeitos do alto teor de cafeína, mas que provavelmente se devia ao medo dos ares de modernidade.
A força de uns, garantiu a liberdade de todos. E sendo o 25 de abril de 1974 a prova da democracia, que tão dificilmente se ganha, mas que rapidamente se pode perder, sobra sempre uma coisa – o inconformismo de quem quer ter voz.
Redes Sociais - Comentários