Opinião

Carta a uma Florentina

Sei que agora já não se escrevem cartas. As palavras deixaram de sair do curso da mão sobre o papel para passarem a habitar o espaço virtual dos e-mails, Facebook, Twitter e tantas outras redes sociais que alimentam os nossos quotidianos.  Deixamos de começar “espero que esta te vá encontrar bem de saúde” para fazermos do like, do emoji, dos gifs, das siglas e dos comentários breves, os códigos padronizados da linguagem das emoções.

Não vou colocar-me de fora, porque também eu lhes reconheço utilidade e amiúde espreito as publicações dos amigos e conhecidos. Reconheço, contudo, que sou muito contida nas publicações e comentários. Continuo, por isso, a privilegiar a via epistolar privada para uma conversa, fazendo jus à etimologia de “conversare”. Desta vez abro uma exceção porque a tua prestação no episódio nº 5 dos Mal-Amanhados, sobre a tua Ilha, bem merece que eu publicamente te venha felicitar.

A nossa amizade nasceu fruto de um mero acaso, como uma daquelas sementes soltas que o vento se encarrega de depositar em solo fértil. Mas foi em terra estrangeira (na cidade de Toronto), onde pela primeira vez te vi, que ela ganhou raízes. O Clube Lusitânia organizava um Ciclo de Cultura Açoriana voltado, como sempre acontecia, para rememorar cais de partidas e matar saudades de memórias vividas. Do programa constava o teu nome – Gabriela Silva. Fui ouvir-te e fiquei fascinada. Pela tua presença, pela facilidade com que durante uma hora, desassobradamente transgressora, agarraste a assistência e ousaste entrar em territórios até então interditos. Sem notas ou qualquer outro guião.

Eu escrevi “sem guião”, mas não é verdade, porque há muito vinhas traçando um roteiro vincado do saber, que carregas grávida de uma ilha alimentada pelo líquido placentário do teu mar dos Açores. É esta ilha, que amas como mais ninguém, que tu partilhas e a tantos dás a conhecer numa promiscuidade sem fronteiras. Por isso, não estranhei que estes novos corsários das ilhas – Luís Filipe Borges e Nuno Costa Santos – te tivessem escolhido como guia. Por mais que insistam que nenhum ser é uma ilha, eu atrevo-me a dizer que toda tu és ilha, de alma e entranhas.

Foi pelas tuas mãos que conheci as Flores, tua e de Pedro da Silveira, onde “as horas vão, morosas como lesmas”, “pelos caminhos de terra e mar”, ávidos de um “abraço de águas salgadas” a pedir regressos aos que partiram em busca das

“califórnias perdidas de abundância”.

Contigo percebi melhor que uma ilha não é apenas o espaço ditado pela geografia, e muito menos um lugar de solidão para imaginar regressos sem nunca ter partido. Está muito para além dessa terra banhada a mar, porque é feita dos sonhos das gentes que a habitam. E tu queres que as pessoas sonhem, desde que nascem, deixando de ter apenas objetivos de superação e competitividade.

Os caboverdianos, também eles ilhéus, criaram uma só palavra para hospitalidade, amabilidade e afabilidade – morabeza, em crioulo. Tu, Gabriela, mulher de coração cheio e mãos abertas, deverias ter um vocábulo só para ti no léxico florentino. Com sotaque, e feito de vogais e consoantes que pudessem encher a boca da tua entrega por inteiro e sem reservas.

Num dos teus poemas, perguntas “Afinal que tamanho tenho eu?” Não soube que unidades utilizaste para te medires, mas sei que resposta te daria. Tu não és do tamanho da tua ilha, não! És muito maior do que ela. Assim que te deitaram no quarto dos sonhos, a cama, como dizes, foi pequena para ti. Ficaste com os pés de fora a tatear a linha do horizonte em busca de mais mundo.

Um dia hás-de recolher à posição fetal para a ilha te acolher no epitáfio que escolheste: “Fico na ilha para devolver o meu corpo à terra e ao mar”.

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