Opinião

Aproveitar o tempo

O cheiro dos meus avós chegou à cozinha primeiro do que eles. - Tina Vallès, A Memória da Árvore

A pandemia, experiência que todos nós estamos a viver pela primeira vez, independentemente da faixa etária a que pertencemos, ditou um confinamento forçado cujas sequelas se começam agora a fazer sentir. Mas, como sou otimista por natureza, não é delas que vou agora falar, mas antes privilegiar as iniciativas de carácter positivo que o isolamento proporcionou e fez frutificar.

No meu caso, nos últimos dois meses, mercê de um projeto em que me envolvi com duas colegas – por sugestão de uma delas -, tenho andado a ler textos de autores de diferentes origens, ocupações, idades e países, unidos por um fio condutor – as memórias de seus avós. A ideia nasceu de uma reflexão sobre o momento presente que, ao considerar os idosos um grupo de risco, afastou avós de netos e netos de avós, cortando pela raiz este secular convívio intergeracional. É certo que vivemos tempos em que as tecnologias se esforçam por preencher as lacunas das ausências, colocando à nossa disposição as mais variadas aplicações que nos atiram para os ecrãs dos telemóveis ou dos computadores. Contudo, nada ainda substitui o toque físico em que, para além do conchego dos corpos, nos chega também o cheiro que é, na maior parte das vezes, pessoal e inconfundível.

A televisão não se cansou de nos mostrar comoventes imagens de reencontros em que, numa primeira fase, estes se faziam através do vidro de uma janela da casa ou mesmo de um carro. Mãos acenavam, sorrisos rasgavam os rostos que disfarçavam lágrimas mal contidas, mas os tão aguardados abraços e beijos haviam de ficar para bem mais tarde, quando o desconfinamento fosse autorizado.

A prontidão com que aqueles que receberam o convite anuíram ao desafio, bem como a rapidez das respostas dentro do prazo estipulado, dizem bem de como o universo dos avós é um campo fértil, onde cada um de nós gosta de lavrar o torrão das suas memórias. Para alguns foi um exercício de catarse, uma prática dolorosa que trouxe ao de cima vidas duras, erguidas com muita luta e sacrifício. Houve até quem confessasse ter chorado de saudades ao recordar tempos que, felizmente, não se voltarão a repetir. Mas a maioria manifestou-se grata por ter sido motivada a fazer algo num período em que se sentira afastada de muitas das rotinas que lhe preenchiam os quotidianos.

E chegaram-nos vidas de várias partes de Portugal Continental, das Ilhas, da diáspora canadiana e americana, de França, do Reino Unido, de Chipre, do Brasil, cujos relatos, pelo seu conteúdo, nos aproximam de outras geografias, tradições locais e regionais, e épocas que nos descrevem formas de ser e de estar de tempos remotos.

Dominam os retratos das avós porque, ontem como hoje, a passagem do testemunho continua a ser matrilinear, ou seja, são as avós quem passa mais tempo com os netos e, por conseguinte, são elas quem deixa as marcas mais fortes. Não se estranhe, portanto, que muitas dessas memórias estejam ligadas ao vestuário – em que o lenço na cabeça, atado das mais diversas formas, assume a função de marca identitária -, à cozinha e aos cheiros das iguarias aí confecionadas, que funcionam como campainhas da memória de cada vez que se quer entrar no universo das avós, dado que a maior parte das suas vidas era aí passada.

Estes textos, num total de 58, estão prestes a ser publicados. Quem organizou esta coletânea antecede desde já a expetativa do prazer de os partilhar, com a certeza de que esta foi a melhor forma de homenagear todos aqueles que, durante a pandemia – avós e netos – se viram privados de um ancestral convívio intergeracional.

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