Opinião

Antes que a memória se apague

É este o título do livro de Roberto Medeiros que será apresentado no auditório da Escola Básica Integrada de Água de Pau. Conheço o autor há vários anos, mas foi a partir do 1º Congresso “A Voz dos Avós”, realizado na Universidade dos Açores que, liberta dos compromissos de cariz mais académico, descobri no Roberto um exímio contador de histórias, cujos protagonistas são a gente da sua terra. 

De cada vez que o Roberto contava mais uma, eu, por defeito de formação, dizia-lhe: – Roberto, tu devias escrever tudo isso, porque, se não ficar registado, parte da história da tua vila corre o risco de desaparecer. Insisti para que me começasse a enviar as crónicas, que eu me encarregaria de as rever e organizar.

Assim começámos e mantivemos uma correspondência regular, mas, de cada vez que eu recebia um texto, acreditem, não eram páginas de word que me entravam no ecrã, mas a voz do Roberto a falar-me no seu inconfundível sotaque. E eu revivia as histórias que já havia ouvido, acompanhadas das gargalhadas espontâneas que soltávamos. 

E foi desta forma que o livro nasceu, fruto do amor pela terra que o Roberto carrega entranhado num ventre sempre disposto a parir mais uma memória carregada de expressões que ele tão bem conhece. Criado na loja do pai “A Cova da Onça”, cedo começou a perceber o mundo através das pessoas que a frequentavam. Por isso, o livro só poderia ter este título “Antes que a memória se apague – crónicas de Água de Pau”, porque essa foi a preocupação maior de Roberto Medeiros: preservar a memória, na perspetiva de que será sempre esta a estabelecer a relação de pertença a um tempo, a um espaço e a uma comunidade.

Como professora de língua, conheço bem a diferença entre “ser” e “estar”. Alguns apenas estão na vila, num efémero rito de passagem, sem deixar marcas, mas também sem nada levar da experiência que viveu. “Gerações há que são fronteiras. Outras, meras zonas de transição, ao mesmo tempo prolongamento e absorção. Outras, ainda, compartimentos estanques. Sobrevivem isolados no tempo que lhes foi dado viver, sem antes nem depois. Um pouco à maneira de certos indivíduos que, não tendo antepassados, tão pouco deixam sucessores” – são palavras do Embaixador Marcello Mathias no seu “Brevíssimo Inventário”.

O livro de Roberto Medeiros não irá permitir que isto aconteça porque retrata a sua geração, recupera os antepassados e deixa aos sucessores o retrato de um tecido urbano e de uma geografia humana a moverem-se em diferentes cenários, incluindo os da emigração, que consigo transportam as experiências até então vividas, e formam o lastro da sua identidade.

Aqui encontro uma das razões pelas quais o livro terá um enorme sucesso em todas as comunidades onde houver naturais ou descendentes de Água de Pau. Na diáspora, entrelaçam-se sempre duas mundivivências – a do lugar de origem e a do país de acolhimento – que fazem com que uma mesma leitura ganhe contornos diferentes em função dos elementos revividos. É sempre com os “olhos do presente, com a experiência que se acumula, que o passado é revisitado” diz-nos Alice Beatriz da Silva, acrescentando ainda que a memória “não pertence apenas ao indivíduo, pois as suas lembranças só se sustentam no interior do grupo com o qual as partilha, constituindo o grupo condição necessária para a existência e preservação dessa memória”.

É nesta relação de pertença e sustentabilidade da memória por via do grupo, que este livro, bem como o título escolhido, fazem sentido. Todas as crónicas são construções identitárias, porque vinculadas a um código grupal – os lugares e as gentes de uma terra, num rememorar de liturgias de retorno às origens.

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