Aida Batista

Ver os comboios passar

Em Portugal, comparando com outros países de igual nível de desenvolvimento, existe ainda um enraizado preconceito face à utilização dos transportes públicos. A maioria das pessoas, nas quais incluo algumas da minha família, gosta de se deslocar de carro até ao local de trabalho, e se conseguir lugar mesmo à porta, tanto melhor. O argumento habitualmente utilizado é que os transportes públicos funcionam muito mal, esquecendo-se que o problema acaba por ser mais um daqueles casos da pescadinha de rabo na boca. Ou seja, se há mais carros a circular, menor será a probabilidade de os transportes poderem fluir a maior velocidade e evitarem os engarrafamentos. Dir-me-ão ainda que, à hora de ponta, se anda como sardinha enlatada tanto nos autocarros, como nos elétricos ou no metro. Se bem que esta premissa seja verdadeira (também passo por isso), o que mais pesa, na mente da maioria das pessoas, é que os transportes públicos se destinam à classe operária, aquela que não tem nem nunca teve dinheiro para comprar carro. O comboio de longo curso talvez seja uma exceção, pois há bastante gente a deslocar-se por esta via, tendo em conta a vantagem de se poder aproveitar o tempo para ler e até mesmo trabalhar, denunciada pela quantidade de portáteis sobre os joelhos ou nos encostos das cadeiras. Se os autocarros, elétricos e metro se confrontam com a sobrelotação em horas de ponta, os comboios, apesar das vantagens referidas, também têm um senão: o desnível dos degraus demasiado alto, e o enorme intervalo entre a porta e a plataforma, que, de tão perigoso, obriga a que, em cada paragem, se faça um alerta aos passageiros: “Atenção à distância entre as portas e a plataforma.” É por isso que, amigas da minha faixa etária, e outras mais velhas, há muito desistiram de viajar, por causa destes obstáculos quase intransponíveis, especialmente quando se leva bagagem. Nem sempre se tem força suficiente para o forte impulso a que somos sujeitos para conseguirmos entrar. Já viajei o bastante na minha vida para não me considerar o exemplo acabado da deslumbrada que pensa que tudo quanto é de fora é que é melhor. Contudo, não nego que, em 1989, quando fui trabalhar para a Finlândia, de imediato senti o enorme atraso que Portugal tinha em relação àquele país, que rapidamente se tem esbatido devido à velocidade com que conseguimos dar um rápido salto qualitativo e quantitativo, que nos coloca em pé de igualdade perante os outros países da Europa. De início, o deslumbramento também existiu face à pontualidade, à limpeza do espaço público, à seriedade e rapidez com que se tratava de tudo nos serviços, ao amor pela natureza, ao respeito pelo espaço de cada um, ao funcionamento dos serviços de saúde e educação, e a pequenos detalhes que, sendo lá novidade, há muito deveriam ter sido por nós importados. Depois desta incursão breve, regresso ao tema dos comboios, porque foi por causa deles que voltei à Finlândia nesta viagem sentimental. Refiro-me ao facto de lá ter visto, pela primeira vez, as plataformas retráteis (não conheço a designação técnica), que se estendem e recolhem, para que as pessoas com dificuldades motoras possam mais facilmente entrar e sair dos transportes. Não sou engenheira mecância, não faço a mínima ideia se semelhante solução seria possível, ou facilmente adaptável à rede ferroviária e rodoviária que já temos. Mas gosto de literatura e de poesia, e Miguel Torga, que também nada sabia de engenharia, escreveu: “Viajar, num sentido profundo é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além.” Pena que, tantas décadas depois, e por falta de soluções tão simples, tantos tenham desistido de viajar, mantendo-se eternos manjericos à janela a ver os comboios passar-portugal-mileniostadium
Crédito: Brian Suman

Em Portugal, comparando com outros países de igual nível de desenvolvimento, existe ainda um enraizado preconceito face à utilização dos transportes públicos. A maioria das pessoas, nas quais incluo algumas da minha família, gosta de se deslocar de carro até ao local de trabalho, e se conseguir lugar mesmo à porta, tanto melhor.

O argumento habitualmente utilizado é que os transportes públicos funcionam muito mal, esquecendo-se que o problema acaba por ser mais um daqueles casos da pescadinha de rabo na boca. Ou seja, se há mais carros a circular, menor será  a probabilidade de os transportes poderem fluir a maior velocidade e evitarem os engarrafamentos. Dir-me-ão ainda que, à hora de ponta, se anda como sardinha enlatada tanto nos autocarros, como nos elétricos ou no metro. Se bem que esta premissa seja verdadeira (também passo por isso), o que mais pesa, na mente da maioria das pessoas, é que os transportes públicos se destinam à classe operária, aquela que não tem nem nunca teve dinheiro para comprar carro.

O comboio de longo curso talvez seja uma exceção, pois há bastante gente a deslocar-se por esta via, tendo em conta a vantagem de se poder aproveitar o tempo para ler e até mesmo trabalhar, denunciada pela quantidade de portáteis sobre os joelhos ou nos encostos das cadeiras.

Se os autocarros, elétricos e metro se confrontam com a sobrelotação em horas de ponta, os comboios, apesar das vantagens referidas, também têm um senão: o desnível dos degraus demasiado alto, e o enorme intervalo entre a porta e a plataforma, que, de tão perigoso, obriga a que, em cada paragem, se faça um alerta aos passageiros: “Atenção à distância entre as portas e a plataforma.”  É por isso que, amigas da minha faixa etária, e outras mais velhas, há muito desistiram de viajar, por causa destes obstáculos quase intransponíveis, especialmente quando se leva bagagem. Nem sempre se tem força suficiente para o forte impulso a que somos sujeitos para conseguirmos entrar.

Já viajei o bastante na minha vida para não me considerar o exemplo acabado da deslumbrada que pensa que tudo quanto é de fora é que é melhor. Contudo, não nego que, em 1989, quando fui trabalhar para a Finlândia, de imediato senti o enorme atraso que Portugal tinha em relação àquele país, que rapidamente se tem esbatido devido à velocidade com que conseguimos dar um rápido salto qualitativo e quantitativo, que nos coloca em pé de igualdade perante os outros países da Europa.

De início, o deslumbramento também existiu face à pontualidade, à limpeza do espaço público, à seriedade e rapidez com que se tratava de tudo nos serviços, ao amor pela natureza, ao respeito pelo espaço de cada um, ao funcionamento dos serviços de saúde e educação, e a pequenos detalhes que, sendo lá novidade, há muito deveriam ter sido por nós importados.

Depois desta incursão breve, regresso ao tema dos comboios, porque foi por causa deles que voltei à Finlândia nesta viagem sentimental. Refiro-me ao facto de lá ter visto, pela primeira vez, as plataformas retráteis (não conheço a designação técnica), que se estendem e recolhem, para que as pessoas com dificuldades motoras possam mais facilmente entrar e sair dos transportes.

Não sou engenheira mecância, não faço a mínima ideia se semelhante solução seria possível, ou facilmente adaptável à rede ferroviária e rodoviária que já temos. Mas gosto de literatura e de poesia, e Miguel Torga, que também nada sabia de engenharia, escreveu: “Viajar, num sentido profundo é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além.”

Pena que, tantas décadas depois, e por falta de soluções tão simples, tantos tenham desistido de viajar, mantendo-se eternos manjericos à janela a ver os comboios passar.

Aida Batista/MS

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