Aida Batista

Velhos e novos meninos de sua mãe

 

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Quando nasci, não havia já ecos da II Guerra Mundial, e nunca os meus pais me falaram dela. Tudo quanto aprendi nos manuais escolares, balizavam-na entre datas, vencedores e vencidos, e, de forma higienizada, retirava-se dos compêndios a dor, o horror e as inumeráveis perdas humanas. Foi por via da literatura, primeiro, e do cinema, depois, que a fiquei a conhecer. Noutra fase bem mais tardia, visitei o campo de Auchsvitz-Birkenau, onde continuam vivas as memórias de um período que a humanidade nunca deveria esquecer.

Pertenço a uma geração filha e neta da paz, e para quem as guerras eram sempre guerras alheias, pese embora o número de vítimas que continuavam a causar. É certo que passei pela descolonização de Angola, quando três movimentos de libertação disputavam áreas de dominação ideológica, mas nunca senti que a minha vida ou a dos meus filhos estivessem em risco. Recentemente, cheguei da Guiné, onde no dia 1 de fevereiro fui testemunha de um golpe de Estado, mas também aí estive segura e protegida, em território da embaixada do meu país, apesar do sobressalto sentido pela família e amigos, alarmados com as notícias que circulavam.

No momento em que escrevo esta crónica, vejo na televisão imagens de jovens entrincheirados que não são personagens de ficção. Também não são duplos que impedem os atores principais de viverem o desconforto dos escombros que lhes caem no corpo. Não são ainda cenários construídos para a rodagem de um filme. O que dizem, quando entrevistados, também não são diálogos de um guião adaptado de mais uma obra literária. Não, nada disto faz parte de candidaturas ao óscar de melhor encenador, melhor fotografia, melhor banda sonora, melhor ator principal, e por aí adiante, conforme as várias categorias “oscarizáveis”.

Assisto a bombardeamentos e explosões em tempo real, a um medir de forças de quem quer esticar a corda até ao limite, a avanços e recuos da diplomacia na tentativa de conter os rastilhos que, a qualquer momento, podem provocar uma guerra.

Ontem, o meu neto mais velho jantou comigo, e dei por mim a vê-lo no mesmo lugar do jovem que percorre o estreito corredor de terra batida das trincheiras. No dia em que esta edição sair, poderá já fazer parte do verso de um poema de Fernando Pessoa.

Por isso, não quero voltar a ver jovens como matéria-prima para poesia ou prosa, nem como peões nas mãos da ambição de políticos que pretendem desenhar um novo mapa para deixar aos novos netos da geração da paz. Vejo velhos com dificuldades no andar, avós e mães com crianças pela mão, e outras ao colo, serem metidos em autocarros com promessas de segurança. Apertada contra o peito de uma delas, uma boneca de trapos, símbolo do aconchego no adormecer que vai mudar de lugar. Talvez venha a ser a única memória que a acompanhará até à idade adulta, como aconteceu com tantas outras, desenraizadas dos espaços a que pertenciam.

Recordo instantâneos de crianças de outros êxodos, agarradas a peluches resgatados dos escombros da devastação. Relembro tantas personagens ficcionadas, na convicção de que nunca saltariam do papel das obras para se instalarem no terreno. Não, não se trata de literatura, nem de cinema! Diante dos meus olhos, as imagens continuam a suceder-se, embora eu mantenha a esperança de que elas recuem até à letra dos tratados, sem que vogais e sílabas se juntem para dar voz à palavra GUERRA, escrita com dois “erres” que lhe dão a agressividade do troar das armas e dos rebentamentos que brotam do ventre da terra.

Uma só palavra pode mudar o mundo. Que as nuvens brancas do espaço negro recuperem a forma das aves – da pomba que se escreve com a palavra PAZ.

Aida Batista/MS

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