Uma página para o futuro

É preciso partir, é preciso ficar.
- Eugénio de Andrade
Hoje, 1de julho, dia em que escrevo e envio este texto, celebra-se o Dia Mundial das Bibliotecas. A edição da semana passada deste jornal foi dedicada aos livros, tendo dado particular destaque à produção literária da nossa diáspora residente na área metropolitana de Toronto. A tudo quanto foi dito e escrito – começando pelo editorial, a que seguiram excelentes artigos de opinião e elucidativas entrevistas de figuras dos mais variados quadrantes profissionais – nada mais teria a acrescentar à magia que os livros acrescentam às nossas vidas. Por isso, não poderia estar mais de acordo com o slogan da capa “Uma página por dia… que bem lhe faria”, decalcado de um provérbio inglês, cunhado em 1913, “An apple a day keeps the doctor away”.
Apesar de meu pai gostar muito de ler, em minha casa nunca existiu uma estante com livros, muito menos uma biblioteca, nem a compra de um jornal diário era um hábito instituído. Os poucos livros, jornais e revistas (se é que lhes podia dar esta designação) que me habituei a ler prendiam-se com a militante prática religiosa dos meus pais, em que a Bíblia e a Imitação de Cristo seriam exemplares de cabeceira. Além destas obras omnipresentes, recordo uma ou outra ligada a biografias de figuras católicas, exemplos de vida tanto para os rapazes como para as raparigas, como era o caso do salesiano João Bosco ou da jovem Sãozinha de Alenquer. O único jornal que via meu pai regularmente ler era o da Casa do Gaiato, a que meu pai estivera sempre ligado em regime de voluntariado. De assinatura mensal, existia uma pequena revista “A Cruzada” e um jornal que, se a memória não me falha, se chamava Clarim, ambos também de matriz religiosa.
Apesar deste universo tão limitado, sempre me conheci com um inato gosto pela leitura, que só podia satisfazer recorrendo às bibliotecas dos estabelecimentos de ensino que frequentava, já que os livros nunca fizeram parte de um cabaz de compras que tinha como prioridade sustentar uma família numerosa.
Pensando em todas as funções que um livro pode desempenhar, ocorre-me um episódio, ligado ao período da descolonização de 1975, que marcou a vida de meus pais e de alguns dos meus irmãos mais novos. Meu pai, que apostara toda a sua vida de trabalho em Benguela, cidade angolana que vira nascer e crescer a sua prole, não soube ler os sinais de mudança e viu-se, de repente, confrontado com uma decisão: ficar ou partir. Devido às suas fortes convicções religiosas – que o faziam entregar o destino da sua família às mãos de Deus -, foi em conformidade com as mesmas que tomou a decisão mais difícil da sua vida. Pegou em dois quadrados de papel em branco e, num deles, escreveu “PARTIR”; no outro, “FICAR”. Dobrou-os em quatro, como se de um boletim de voto se tratasse, baralhou-os e, abrindo aleatoriamente a Bíblia por duas vezes, colocou cada um deles em páginas diferentes, fechando-a logo de seguida. Chamou depois minha mãe, explicou-lhe o que fizera e, num silêncio cúmplice de olhares interrogativos, retirou um dos papéis do interior da Bíblia.
Tenho quase a certeza de que o que lhe saiu não seria a solução que ele mais desejara, mas como discípulo fiel da vontade de Deus, limitou-se a seguir o exemplo de Maria em resposta ao Arcanjo Gabriel: “Faça-se em mim segundo a tua vontade”. E foi assim que saiu grávido de esperanças numa outra vida para si e os sete filhos menores que consigo trazia.
Julho foi o mês em que nos deixou para sempre. A melhor maneira de o homenagear é recordar que foi em duas páginas de prosa que depositou o voto de um futuro de muitos capítulos por escrever.
Aida Batista/MS
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