Aida Batista

Uma nova orfandade da humanidade

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O título de uma das muitas notificações, que diariamente recebo no meu telemóvel é: “Entraram 360 menores ucranianos sem os pais em Portugal”. Tenho a certeza de que estes números não se ficarão por aqui, mas tenderão a aumentar nos próximos dias ou meses. De todas estas crianças, não sei quantas perderam as mães, ou se foram as mães que as enviaram evitando-lhes um mal maior que a orfandade provisória – a morte – na esperança de um reencontro futuro.

Pese embora não existirem registos, nem provas que possam confirmar a citação, não sou das que alinha pela frase atribuída a Estaline, em 1947, durante uma reunião com comissários de alta patente: “A morte de uma só pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística.” Nem que tivesse entrado apenas uma só criança, esta seria já razão suficiente para nos preocuparmos, porque por trás do seu drama existe um devastador cenário de guerra que nenhum de nós pode ignorar.

As 360 que estão connosco, a salvo das consequências da guerra, ficarão marcadas a ferro e fogo para o resto da vida, testemunhas inocentes que foram da monstruosidade demonstrada pela besta animal que habita em cada ser humano, como parte intrínseca da sua natureza.

Neurologistas e outros investigadores destas áreas defendem que, quando determinadas situações são demasiado traumáticas, a mente tem tendência para funcionar como uma borracha e tudo apagar, como se todas as nossas memórias não passassem de folhas rasuradas, em vez de fazerem parte de um arquivo já organizado das nossas vidas.

Como leiga na matéria, e sem certezas de nada, mantenho a convicção de que tudo quanto possa desaparecer, por força de um trauma, se manterá sedimentado em camadas no nosso cérebro, como se este funcionasse como um palimpsesto. Deduzo, a partir do muito que já li sobre o tema, que bastará que um dia se dê um qualquer abanão nas placas que o compõem para que as imagens, durante anos recalcadas e esquecidas, possam vir ao de cima. Primeiro de forma muito difusa, como sombras que tendem a juntar-se para, como num puzzle, formarem um quadro mais nítido e definitivo.

Nada se sabe ainda sobre o que o futuro lhes reserva. Algumas estão em casas de famílias que se disponibilizaram para, temporariamente, as acolherem; outras, cujos pais, devidamente identificados, continuam na Ucrânia, aguardam pelo dia em que se possam reunir de novo; as últimas, dadas já como órfãs, serão muito provavelmente adotadas por casais portugueses.

De acordo com qualquer destes futuros aqui traçados, nada nos garante que uns venham a ser mais felizes dos que outros, já que guerras de outra natureza poderão vir a fazer parte do quotidiano destas crianças, porque a besta humana tanto se alimenta dos tempos de guerra como dos da paz.

O Papa Francisco, invocando o período pascal que se aproxima, pediu tréguas, implorou que as armas se calassem, em nome de um Deus Cristão, comum a ambas as partes e com rituais semelhantes. No Antigo Testamento, o cordeiro era o animal sacrificial oferecido em honra do Senhor.

Hoje, no momento da comunhão, em que toda a comunidade se reúne para, sob a forma de hóstia, receber o Corpo do Senhor, somos todos convidados, nesse momento, o celebrante da missa, ergue a custódia e diz: Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós, dai-nos a paz!

Infelizmente, antes da guerra, todas as figuras de estilo nos escaparam das narrativas: as comparações, as analogias, as repetições, os pleonasmos, as metonímias, as sinédoques, as perífrases e tantas outras.

Confrontados com o horror levado a um hiperbolismo já não imaginado, os humanos voltaram a ser os corpos sacrificados no altar do ódio.

Por isso, a presente orfandade não será apenas a de falta de pai ou de mãe, mas a da piedade que deixou de fazer parte do léxico pascal.

Aida Batista/MS

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