Aida Batista

Uma bata portuguesa, com certeza!

 

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Fruto de uma educação urbana, nunca tive de meter as mãos na terra para dela tirar o que me chegava ao prato. Até o jardim, no quintal da casa, era minha mãe quem dele cuidava, dominando na perfeição a linguagem das plantas. Onde quer visse uma espécie nova, não se ensaiava nada de pedir uma raiz ou uma pernada, e, com os seus dedos de horticultora, os colocar na companhia das outras.

Apesar de ter crescido numa capital de província, nunca vivi alheia a práticas, expressões populares e palavras ligadas ao campo, porque me habituei a ouvir de meus pais as suas origens rurais, em que se destacavam as atividades agrícolas. Fui construindo, no meu imaginário, cenários com paisagens cheias de cores, cheiros e gente dentro. A quilómetros de distância da aldeia que nunca conhecera, aprendi a conhecer o Portugal dos anos 50 e 60, que em nada se compara ao de hoje. Porém, pese embora o recurso à mais moderna tecnologia, há um conjunto de tarefas que nunca cortaram com os modelos de outrora.

Nesta minha recente viagem ao Norte do país, ao evitarmos as autoestradas, percorremos antigas estradas de curvas e contracurvas sinuosas e caminhos vicinais, que nos permitiram ver e ouvir marcas de um tempo que não desapareceu: vocabulário que já ninguém usa, expressões regionais típicas, vestígios de tarefas tradicionais, ruínas que resistem ao tempo, e teimam em não se deixarem cair, com a ajuda de carcomidas traves que lhes suportam o peso, ou portas com ferrolhos de madeira, que nada protegem porque podem ser abertas por quem passa. No entanto, ali estão, símbolo de um tempo que vivia de portas abertas e respeitava a propriedade alheia.
Estávamos junto de um santuário, um dos muitos espalhados pelo país, quando uma vaca cachena (característica da Serra do Soajo), atravessou a estrada com uma corda ao pescoço, sinal de que fugira do local a que havia sido presa. Uma camponesa, que conhecia a sua proprietária, agarrou-a pela corda, e, sem medo, puxou-a indicando-lhe o caminho de regresso. Sem qualquer cerimónia, voltou-se para nós e, numa avaliação depreciativa, atirou: “Ó meninas, é feia ‘cu má’ dona, a caralha!” A gente do Norte, além de não colocar filtros na linguagem, ainda a feminiza, porque a gramática que utiliza ganhou o privilégio de se exprimir na liberdade que o povo lhe dá.
Ao longo da paisagem, a mulher está muito presente e vestida com uma indumentária, que nunca vi em mais nenhum país que tenha visitado. Por a considerar genuinamente nossa, chamo-lhe “a bata portuguesa”, tendo sabido que também emigrou com o enxoval das mulheres da nossa diáspora! Por cima da roupa que diariamente usam, e para se protegerem de possíveis nódoas, vestem uma bata por cima. O modelo pouco varia: decote redondo ou em bico, com botões de cima a baixo, que permitem livrarem-se rapidamente dela caso a situação exija apresentação mais cuidada. O padrão do tecido também pouco varia e, habitualmente, recorre a uma variedade de formas geométricas de diversas cores e tamanhos.

Há uns anos, participei na apresentação de um livro de uma escritora minha amiga, na Casa do Alentejo de Toronto. A autora vestia um lindo vestido de seda natural que a filha lhe havia oferecido para a ocasião. Após a sessão de autógrafos, tirámos várias fotografias, mas, assim que olhou para uma delas, não disfarçou o desagrado: “Ó Aida, parece que estou com uma bata.”

Não precisou de acrescentar mais nada. Percebi logo a que batas se referia, já que a nossa roupa também fala e envia mensagens fáceis de descodificar. Mais tarde, confessou-me que nunca mais o voltara a vestir em cerimónias públicas.

Coitado, de fino corte, não merecia tal sorte!

Aida Batista/MS

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