Aida Batista

Um sorriso à nossa espera

 

milenio stadium - sapatos - aida batista

 

 

Vamos morrer, mas somos sensatos,
e à noite, debaixo da cama,
deixamos, simétricos e exactos,
o medo e os sapatos.

Pedro Mexia

 

Depois de mais de dois anos de cancelamento da alegria do convívio, o Dia de Portugal, as festas de Stº António de Lisboa e as elevadas temperaturas do fim de semana foram o pretexto ideal para que as paradas, os desfiles e as marchas devolvessem às ruas as multidões que quiseram festejar não só as efemérides, mas também regressar à normalidade de 2020. Foi como se tivéssemos hibernado e sentíssemos o despertar de todos os sentidos apostados na recuperação de um tempo perdido.

No meio de tanto contentamento transmitido pela televisão, o som de um plim no telemóvel anunciou a chegada de uma mensagem. Olhei para o ecrã, era uma amiga: “Estou sem chão, o João José deixou-nos, vítima de ataque cardíaco”. Tinha na mão “Todas as palavras”, poesia reunida de Manuel António Pina, mas fiquei sem palavras, como se os dois versos do poema que acabara de ler fossem premonitórios: “As palavras esmagam-se entre o silêncio/ que as cerca e o silêncio que transportam”. Sem palavras continuei, porque também as minhas se sentiram esmagadas pelo pesado silêncio transportado pela mensagem.

Estas notícias, de tão inesperadas, chegam-nos sempre silenciosas, pela calada de um sobressalto onde a dúvida se instala. Será verdade? Não teria havido um engano? Não, não era. As redes sociais encarregaram-se de multiplicar as cadentes condolências dos que, tal como eu, se sentiram incréus no primeiro momento. Um e outro testemunho diziam: “ainda anteontem estive com ele; falei com ele ontem e estava bem”, como se “estar mal” fosse condição sem a qual não se deveria morrer.

Invisível, a foice que a mão da morte transporta só ronda a vida, sendo-lhe indiferente a idade, a condição social ou o estado em que está. Saudável ou doente, qualquer um pode, inesperadamente, fazer parte da ceifa que nos está destinada a partir do momento em que nascemos. Nessa hora primeira, assinamos um contrato vitalício sem direito a qualquer cláusula de exceção!

Deixei-me viajar até Toronto, e saí no cruzamento entre a Dundas e a avenida onde se situava o prédio do Consulado Geral de Portugal, de que era Chanceler. No elevador, por mero acaso, chegámos a encontrar-nos. Carreguei no botão do 14º andar, entrei na sala de espera e dirigi-me ao seu gabinete. O sorriso afetuoso com que me recebia continua estampado na inocência do seu rosto. Um desabafo sobre o trabalho, acrescido de uma pitada de maledicência, a que juntava uma piada oportuna eram ingredientes suficientes para criar um ambiente descontraído de gargalhadas, que era a sua forma de olhar de frente para a vida. Vida que lhe foi traiçoeira, que lhe apressou a partida, como se fosse chegada a hora de colocar o pé no estribo de uma viagem antecipada, que não lhe permitiria viver os anos que lhe faltavam.

Com ele levou o sorriso, marca de água impressa a contraluz na sua cara, que nunca largava. Desconfio que deve também ter sorrido à morte, pensando que ela estaria a jogar com ele a roleta do destino que nos dita a sorte. Não era a brincar, chegara a sua vez, enquanto nós continuamos a aguardar o dia em que a seta decida, de forma aleatória, que o nosso nome faça parte de uma lista necrológica onde temos lugar cativo.
Quando esse dia chegar, além do sorriso, teremos “dois braços à nossa espera” numa casa portuguesa, com certeza, como era o local onde trabalhava – um pedaço de Portugal – com vista para uma comunidade a que dedicou tantos anos da sua vida.

Aida Batista/MS

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER