Um beijo na palma da mão
É assim que começa o “Difícil Retorno”, soneto do escritor migrante, emigrante e imigrante Sídónio Muralha. Muitos dos que um dia decidiram, ou foram obrigados a partir, levaram na bagagem o mesmo pesado desejo de um dia poderem regressar.
Sidónio Muralha, após o seu primeiro exílio voluntário no Congo, faz da sua vida uma andarilhagem triangular entre África, Europa e América – Brasil. Foi neste último país que se fixou, vindo a falecer em Curitiba, onde se encontra a Fundação Sidónio Muralha, instituída pela viúva Helen Butler Muralha e filhos. Pretenderam, assim, homenagear o marido e pai, cuja vida foi dedicada à defesa das crianças, da educação, da literatura, dos direitos humanos, da liberdade e da vida. Como entidade sem fins lucrativos, é responsável pela preservação e difusão da obra literária do escritor, um dos precursores do neo-realismo português.
Da vontade desta fundação, em parceria com a Universidade Federal do Paraná e a Comissão das Migrações da SGL (Sociedade de Geografia de Lisboa), nasceu a ideia de organizar um Colóquio Internacional, na data do seu centenário, no ano de 2020. À semelhança do que foi o percurso de Sidónio, tantas vezes fruto do imponderável das circunstâncias, a pandemia, que nos apanhou de surpresa, obrigou ao adiamento da iniciativa.
A vontade primeira, acrescida da persistência e da tenacidade dos que a haviam pensado, nunca esmoreceu, e o que tinha sido planeado aconteceu em 2021, dando forma à parte final do mesmo poema: “Voltar não voltarei. Sempre aí estive”. E estiveste, durante os três dias em que te celebrámos (24, 25 e 26 de novembro), num sistema híbrido, feito de presencial e zoom, em que as duas pátrias – aquela onde nasceste e a outra onde decidiste ficar – estiveram juntas, num diálogo permanente com a tua obra, como se estivéssemos todos em casa, entre a família e amigos, em alegre convívio contigo. Falámos de ti e das tuas mais variadas facetas, como marido, pai, tio, amigo e escritor.
Sobre esta última, não faltaram destacados estudiosos e pesquisadores que, das entranhas da tua prosa e poesia, retiraram a matéria prima com que, durante aqueles dias, construíram as brilhantes comunicações com que fomos brindados. Como se estivesses deitado numa mesa de laboratório, abriram-te com o corte cirúrgico de um bisturi para que todo o teu mundo interior ficasse exposto à curiosidade intelectual de tantos que te puderam conhecer melhor. Foste dissecado texto a texto (prosa, poesia, cartas, apontamentos), sem esquecer nenhum dos teus outros ofícios, como o de letrista, por exemplo. Do mais profundo das tuas vísceras, foram retirados os materiais com que organizaram a exposição presente nas vitrinas mesmo ao lado da sala, onde conversávamos contigo.
No poema a Beatriz (nome da tua filha), dizes-lhe: “Agora que tu/ pegaste nas malas/ não leves somente/ as roupas contigo (…). E não levou. Junto às roupas, ia o teu legado maior, a tua mensagem “aquele recado/ para todo o mundo/ todos os países/ todas as cidades/ e todas as ruas/ e todas as portas (…).
Não poderias jamais imaginar que, depois de partires, surgiriam outras formas de comunicar que pudessem concretizar o teu desejo de fazer chegar a todo o lado a tua voz irreverente, o teu “dizer não aos donos do mundo”, porque um homem de carácter paga o seu preço, mesmo que este seja caro.
Na despedida de “Valéria Valéria” (nome da tua neta), terminas assim: “Valéria Valéria/ recado ao futuro/ quando chegar o ano dois mil/ dá-lhe um beijo por mim. Dois mil recebeu o beijo que lhe enviaste, mas é de 2021 que, a partir de um sopro na palma da mão, te atiramos um beijo muito grato por tudo quanto que nos deixaste.
Aida Batista/MS
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