Tou a chegar a casa

Se na mala coubesse um oceanoou um riso de vento com odor a maresia
evitar-se-iam algumas lágrimas na hora da despedida.
- José Alberto Postiga, in Caderno Íntimo da Ausência
Este ano não assisti à transmissão televisiva do Festival da Canção. Por essa razão, não sei quantas canções concorreram, nem qual foi a posição de cada uma após a votação final, cujos critérios igualmente desconheço. Fiquei a saber qual delas ganhou, bem como o comentário de Luís Osório, no seu Postal do Dia, sobre o comportamento do cantor concorrente Fernando Daniel, através das redes sociais. Estas foram ainda acrescentando uma acesa polémica, como é natural nestas situações, gerada pela divergência de opiniões quanto ao resultado.
Quando tomei conhecimento do nome da canção vencedora, a minha curiosidade aumentou e cliquei no link que me deu acesso tanto à interpretação como à letra. Sem ter qualquer outra como termo de comparação, continuo a não fazer ideia se seria esta ou não a justa vencedora para nos levar até Basileia, onde em maio se realizará o certame.
O que logo me chamou a atenção foi o título “Deslocado”. Ao ouvi-la, confirmei, como suspeitava, tratar-se de uma canção de emigração, o que logo fez soar as minhas campainhas de alerta. O verbo “partir” nunca deixou de manter a sua atualidade no nosso país e a carga simbólica da ausência está toda esparramada ao longo dos versos do poema; a começar pela mala, objeto iconográfico sempre presente em qualquer movimento migratório, e tantas vezes retratada em publicações sobre o tema, como tão bem assinala Maria Beatriz Rocha Trindade na sua obra “Em torno da Mobilidade”. A mala onde não cabe a “saudade acumulada” nos foles do prometido regresso. Seguem-se os estereótipos habituais de quem parte de lugares onde impera o silêncio da paisagem, e que, depois, não aguenta “o mar de gente” ou o “monte de betão” que nada diz a quem leva outro mar no coração. O mesmo mar que rodeia o terreiro dos afetos da ilha feita casa, onde a mãe ficou a cozinhar ausências no lume brando das esperas. Uma voz pede-lhe que olhe a janela, metáfora de uma moldura que dá para dois mundos – aquele que fica e o que a linha do horizonte almeja na esperança de ver o vulto do regresso a casa. Sempre a casa, por mais casas que se tenha habitado, mas às quais nunca se chega a pertencer por faltar a alma da casa primeira, cujas paredes guardam as memórias da inocência perdida.
Apesar de ter um registo musical diferente, encontramos paralelismos entre esta canção e a do consagrado Pedro Abrunhosa “Para os braços de minha mãe.” O mesmo inconformismo com a solidão, os dias cinzentos ou o frio gélido de outras paragens.
A banda que interpreta a canção chama-se Napa e é composta por cinco jovens naturais da ilha da Madeira que, à semelhança do arquipélago dos Açores, deu muitos filhos ao universo da emigração. Num recente encontro sobre “Movimentos Migratórios Regionais”, o diretor regional das Comunidades e Cooperação Externa, Rui Abreu, declarou que cerca de um milhão e meio de madeirenses, ou descendentes de madeirenses, se encontram espalhados pelos cinco continentes. Não se estranhe, por isso, que, à hora a que estou a escrever, me cheguem notícias de que a canção rapidamente se espalhou e começou a conquistar as comunidades portuguesas. No Luxemburgo, por exemplo, ela atingiu o 6º lugar no top das 50 músicas mais ouvidas na plataforma Spotify, tendo já atingido mais de um milhão de reproduções.
Isto prova bem, que não são só os imigrantes da anterior geração que a ouvem, mas muitos jovens, estudantes ou em início de carreira profissional, que no seu “Caderno Íntimo da Ausência” continuam a escrever a esperança de voltar a casa.
Aida Batista/MS
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