Também fui visitar Pastores

Revejo-me numa tradicional sala de aulas da instrução primária a apontar, num mapa amarelecido pelo tempo, as diferentes províncias (como então se chamavam) que compunham o pequeno retângulo a que chamávamos de Metrópole. Começava pelo Minho e, numa cantilena muito bem ensaiada, vinha embalada por ali abaixo, atravessava sofregamente o Alentejo para, por fim, me quedar pelo Algarve, não fosse mergulhar no mar.
Depois, seguiam-se as ilhas adjacentes (era também assim que se designavam), dispersas por dois arquipélagos, cujas ilhas aprendi também a nomear. Conheci todas as outras províncias circundando o Atlântico para chegar ao Índico e me afastar um pouco mais até me cruzar com um crocodilo que se chamava Timor.
Aquela onde eu vivia chamava-se Angola e, muito cedo, soube que era catorze vezes maior do que o espaço onde estavam plantadas as minhas raízes. Enchia-me de orgulho saber que eu vivia na maior delas, naquela onde o olhar não alcança o horizonte dos espaços que indefinidamente se multiplicam. Esse era o meu lugar de pertença, embora soubesse que viera de um outro, que aprendi a conhecer cavalgando as memórias de meus pais, quando a geografia se forma por via da oralidade. E esse lugar era feito de serranias e vales profundos, onde corria o Douro encurralado entre margens apertadas.
Da primeira vez que o visitei, numas férias de família, ao percorrer as sinuosas e íngremes estradas da Régua até Tabuaço, percebi melhor o sentido figurativo do verbo serpentear como figura de estilo. Habituada à imensidão dos espaços abertos, olhei os socalcos do Douro com espanto e admiração. Nas gélidas noites de inverno, num abecedário de luzes dispersas aqui e acolá, fui-me familiarizando com o nome das aldeias encavalitadas nas encostas.
A diástole da vida me governa. o corpo fustigado pela carência das águas… e
obedeço ao vento, ao sol, as luas da verdura.
Ruy Duarte de Carvalho
Só mais tarde, quando regressei definitivamente, tive oportunidade de atravessar o Alentejo e perceber a diferença entre aquele norte telúrico de Aquilino e Torga e a “charneca rude a abrir em flor” de Florbela Espanca. A sensação mais forte foi sentir que o Alentejo era afinal um pedaço daquela África que eu deixara. À minha frente, desenhavam-se os mesmos espaços a perder de vista, o mesmo silêncio, as mesmas solidões humanas nascidas da falta de vizinhança.
A Casa do Alentejo em Toronto – que tantas vezes frequentei durante a celebração das suas semanas culturais e outras iniciativas de reconhecido mérito, que na passada semana se repetiram -, fez-me muitas vezes regressar à magia desse espaço, onde os dois chãos se fundiam e confundiam no meu imaginário afetivo.
Afinal, que sabia eu de lonjuras e solidões humanas quando o meu país se reduz a uns meros 740 km de Estrada Nacional 2 (EN2) que liga Chaves, a Norte, a Faro, no Sul, e cujo trajeto pode ser feito em menos de meia dúzia de horas? Nesta tão curta extensão, o que é o Alentejo senão um pequeno vazio num mapa reduzido à sua pequenez? Sei-o agora, em pleno deserto do Namibe, onde podemos embrenhar-nos por estradas e picadas sem que vivalma se cruze no nosso caminho. Olhar o horizonte e perceber que ele se afasta à medida que vamos avançando. Sentir a nudez da terra onde, no castanho da terra, despontam solitárias welwitschias, plantas que não precisam de água para poderem viver. Olhar as nuvens do céu e saber que em nenhuma delas mora a água que permita sentir o cheiro a terra molhada.
E, agora sim, compreender por que houve uma vez um poeta – Ruy Duarte de Carvalho – que, em vez das lápides dos cemitérios, escolheu ficar sepultado na transumância dos silêncios das tribos de pastores que ele tão bem soube ouvir.
Aida Batista/MS




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