Retorno às aulas
O mundo está cheio de livros fantásticos
que ninguém lê.
Umberto Eco
Sou do tempo do livro único. Tivessem os meus avós estudado, e quase poderia afiançar que teria herdado os livros deles. A condição de ter sido a primogénita deu-me o privilégio de todos os anos estrear os meus próprios livros.
Em mês de regresso às aulas, não posso deixar de recordar o entusiasmo com que na minha infância e adolescência sempre vivi esta época especial do ano. Vejo-me a fazer o roteiro das livrarias de Benguela – Lello, Magalhães e Okapi – ditando a lista dos compêndios e dicionários, que iam aumentando na proporção do meu avanço na escada da escolaridade. Depois, os cadernos diários – pautados, quadriculados, em branco -, um para cada disciplina. Ah… e a sebenta, sempre uma sebenta que servia de rascunho para tudo, e que, apesar do nome, se mantinha limpinha. Por fim, todos os outros materiais, absolutamente necessários para um bom desempenho na profissão de estudante: canetas, lápis, afia-lápis, borracha, fita-cola, régua, esquadro, compasso, guaches, pincéis de diferentes tamanhos e texturas, tinta da china, sem esquecer os rolos de papel estampado e colorido para forrar livros e cadernos.
Sim, forravam-se os livros e os cadernos. Era esta ocupação que, juntamente com o cheiro a novidade, conferia à nossa casa o ambiente de abertura do ano escolar. Os da minha geração devem ter bem presente a perícia exigida à tarefa de forrar um livro. Ora vamos lá todos fazer um exercício de memória. Desenrolava-se o papel e cortava-se à medida do livro, deixando a margem necessária para a dobra interior da capa e da contracapa. Vincava-se muito bem, sempre que se metia no sentido vertical do livro esta margem para dentro. De seguida, e antes de começar igual procedimento no sentido da horizontal, faziam-se dois cortes, ligeiramente em diagonal, na lombada superior e inferior. Metia-se esse pedaço geométrico em forma de trapézio para dentro e só depois se procedia à dobra das respetivas margens superiores. Para o trabalho poder ser dado como concluído, faltava uma última operação: dobrar em forma de triângulo cada canto, tanto no ponto de encontro da margem superior, como da inferior, que se prendia com uma tira de fita cola para a capa ficar mais segura.
Calculo que alguém mais jovem se interrogará: “E como é que se distinguiam, se eram todos forrados por igual?” Encarregávamo-nos de lhes colocar uma etiqueta. No caso dos livros, esta era aposta na lombada; nos cadernos, na capa. O cúmulo do preciosismo consistia em, além do papel, usar ainda uma segunda capa de plástico transparente, a fim de que se mantivessem limpos do primeiro ao último dia do ano letivo.
Não sei exatamente quantos anos tinha, mas recordo perfeitamente que foi numa dessas tardes, em que me entregava à agradável tarefa de forrar os meus livros, que o meu irmão se lembrou de entrar pela sala e começar a mexer em tudo, desorganizando o meu trabalho. Era demasiado nova para me interrogar sobre as razões de tal atitude. Mera provocação? Alguma invejita infantil por não ter a possibilidade de estrear livros como eu? Não sei! Sei apenas que lhe manifestei o meu desagrado pela atitude e lhe pedi que não tocasse nas minhas coisas. Devo ter emprestado àquele pedido toda a autoridade que o estatuto de irmã mais velha me conferia, fazendo com que ele se sentisse um intruso a cometer o sacrilégio de profanar tudo quanto eu tinha de mais sagrado – os meus livros! Por isso, acedeu e saiu, mas logo voltou movido pela curiosidade que a pilha colorida dos livros provocava naquele meu território interdito.
Ano pós ano, face a cada ritual de abertura de um novo ano letivo, relembro a minha alegria do regresso às aulas entranhada ainda do odor dos livros novos.
Aida Batista/MS
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