Para quando uma outra receita?
Os homens organizam-se politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças.
Hannah Arendt
Inicio esta crónica numa manhã fresca com ameaça de chuva e prenúncios de outono. Outra estação se aproxima depois do inferno de incêndios que acabámos de viver. Se as condições climatéricas estão a mudar, o mesmo não se passa com a crispação política, tanto mais que a comunicação social nos zurze com opiniões de doutos analistas que, exaustivamente, nos tentam explicar o que há anos continua à vista de toda a gente.
Nada de novo, só que rapidamente se desaprende o “mea culpa” para apontar o dedo a outrem. Todos quantos, de forma célere, se entretêm neste jogo de passa-culpas, esquecem-se de que o ponto a que chegámos se deve aos erros acumulados por diferentes agentes políticos durante as últimas décadas. A leitura do presente nunca pode ser feita de forma linear, como se estivéssemos perante um texto único, inscrito numa folha de papel limpa de rascunhos. Ao presente, aplica-se a metáfora do palimpsesto, que era um manuscrito em pergaminho – de pele de carneiro, cabra ou ovelha – usado pelos copistas da Idade Média, que tentavam apagar os textos aí escritos, sempre que dele necessitavam para escrever outro. Ao ser analisado à vista desarmada, apenas era visível a inscrição do último registo. Numa observação mais cuidada e através de processos químicos, como o recurso aos raios infravermelhos e ultravioletas, é hoje possível desvendar camadas inferiores que, apesar da tentativa de apagamento, nos revelam textos lá deixados por outros copistas. Explicando melhor: o último texto, que é a situação a chegámos, foi escrito pelos diferentes políticos que ao longo das últimas décadas sempre fizeram parte do arco do poder e lá deixaram, em sucessivos estratos, as marcas da sua governação.
De nada adianta ao senhor Presidente da República, agora na posição de árbitro acima de qualquer suspeita, vir assumir o papel de moderador. Também ele fez parte dessa mesma classe política, e, no palimpsesto em que o país está transformado, deixou a sua camada de textos gerados num guião, que os que se seguiram se encarregam de manter.
Foram décadas a deixar que um certo corporativismo se instalasse em determinadas profissões, de modo a fazer delas uma classe de intocáveis. Foram décadas de mordomias traduzidas numa cadeia de cargos intermédios pouco produtivos, mas bem remunerados. Foram décadas de privilégios que ganharam o estatuto de direitos adquiridos e nos quais não se podia mexer. Foram décadas a reconhecer que alguma coisa tinha de mudar, mas que a clientela política, forjada nas relações de compadrio, obrigava a varrer para a geração seguinte o ónus de tomar decisões. Foram décadas a fazer mira ao voto, esquecendo que o futuro morava ao lado e estava, afinal, tão perto. Foram décadas a viver da ilusão de termos acesso a tudo (à casa, ao carro, ao telemóvel, à viagem), pagos em prestações que o empréstimo obtido no banco se encarregava de publicitar e multiplicar. Foram décadas a viver um ilusório presente, como se o presente não fosse logo futuro assim que acabasse de ser vivido. E cá está ele, agora, a cobrar-nos os juros da leviandade em que temos vivido.
Somos um povo com imensas qualidades.
Temos força para enfrentar qualquer inimigo que venha de fora, mas falta-nos a coragem para lutar contra os nossos fantasmas interiores. Aqueles que nós próprios criámos, sendo o maior deles, esta arreigada crença de continuar à espera de um qualquer messias, em vez de sermos nós a reinventar um futuro para o país.
Chegou a hora de a classe política se sentar à mesa para aprender a usar os talheres da convivência pacífica, os únicos que permitem trinchar a receita de que o país precisa.
Aida Batista/MS
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