O último colo
São meus filhos. Gerei-os no meu ventre. Nove meses de esperança, lua a lua. Grandes barcos os levam, lentamente.
Natércia Freire (1991), Obra poética, vol.1
No passado dia 9 de abril, celebrou-se o Dia do Combatente. Em vários concelhos do país, organizaram-se cerimónias destinadas a lembrar, a homenagear e, em alguns casos, também a agraciar militares pelo seu esforço e entrega ao serviço da Pátria. Fui assistir à cerimónia e, por entre a movimentação de todo o ritual marcial, que começa com o hino de Portugal e termina com o do Combatente, recordei a nossa guerra colonial. Apesar de ter tido alguns familiares próximos que nela participaram (um irmão, um tio e um primo), nenhum deles regressou a casa em caixa de pinho ou ferido em combate.
Era ainda jovem quando tudo começou, mas tenho memória dos navios cheios de soldados que desembarcavam no porto do Lobito (Angola), e da forma ordeira como, fardados, desfilavam no cais ao som de marchas militares.
Meus pais nada sabiam de política nem tinham consciência do que era um regime colonial. Apenas tinham ouvido falar de uma terra vasta de horizontes, para onde se podia ir em busca de um futuro melhor, desde que se conseguisse carta de chamada. A vontade de partir fê-los descobrir, numa aldeia vizinha, alguém que lhes poderia conseguir tal documento. E um dia partiram: primeiro ele para preparar o ninho onde minha mãe acomodaria as duas filhas que levava pela mão. Alguns anos depois, a guerra colonial surpreendeu-nos na inocência de uma vida entregue ao trabalho.
Educada no Colégio das Irmãs Doroteias, treinada a crer muito, mas a questionar pouco, não percebia muito bem o que se estava a passar. Por via de um ou outro desabafo, que as freiras de forma descuidada deixavam cair entre si, intuí que era por causa da guerra que as filhas dos fazendeiros das roças do café do Norte tinham deixado de ir os passar fins-de-semana a casa.
Em casa, também ninguém nos dizia nada e era através da rádio que eu obtinha algumas notícias soltas. Por causa do natural ruído de crianças a crescer, meu pai ligava o rádio baixinho apenas duas vezes por dia, à hora das principais refeições – almoço e jantar. Sentado numa cadeira, inclinava-se para ouvir melhor e assistia à abertura do noticiário. Só depois se vinha juntar a nós.
Dias houve em que ficava um pouco mais de tempo e eu deveria ser a única a descodificar algumas expressões novas – terroristas, contingente militar, defesa do território pátrio – que mais tarde, no silêncio da casa, ouvia meu pai partilhar com minha mãe em conversas sussurradas à noite, quando pensavam que já estávamos todos a dormir.
Os terroristas eram aqueles que tinham pegado em armas contra nós, razão que levara Salazar a decidir a ida «já e em força para Angola», que era nossa, de jovens mancebos em idade de combater. E assim foram chegando navios carregando no ventre filhos de muitos ventres, para lutarem contra irmãos de outros ventres. Muitos deles nada mais conheciam do mundo do que o horizonte do céu do povoado onde haviam nascido.
Para nós, que vivíamos no litoral sul, a guerra era qualquer coisa muito longínqua – no Norte e no Leste de Angola, conforme noticiavam as autoridades oficiais. A sua verdadeira dimensão só vim a conhecê-la bem mais tarde, quando comecei a tomar consciência de quão injusta e desnecessária fora uma guerra que matava filhos gerados nos ventres dos dois lados, lua a lua, durante treze longos anos.
E porque a Páscoa é no próximo domingo, quando estivermos a celebrar com os nossos, recordemos todas as “Pietás” a quem é negado o último colo aos filhos. No calvário das suas vidas, a prece “Que volte cedo, e bem!” nunca chegou a ser ouvida.
Aida Batista/MS
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