O fado de quem vai sempre adiante
Levas contigo
o que deixas
sobre a pele nua do mar.Eduardo Bettencourt Pinto
Apesar da distância, as redes sociais permitem-me seguir as festividades já iniciadas em Toronto, no passado fim de semana, para celebrar a semana de Portugal. Hoje, cumprimos mais um Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Não sei se mais algum país presta homenagem, no seu dia, a todos os filhos que vivem afastados da Pátria. No caso de Portugal, é imperioso que o faça, pois, tal como o poeta que hoje lembramos, somos feitos de um povo que, há séculos, tem inscrita, no código genético, a andarilhagem como forma de vida.
Celebrar o povo na sua vertente diaspórica é também celebrar a língua, cuja matriz europeia se foi diversificando tanto quanto os lugares por onde andou, numa miscigenação de palavras, termos e expressões que marcam a memória dessas passagens. Oiço muitos puristas defenderem a língua como coisa sua, colocando a tónica num possessivo que há muito mudou de dono. Segundo eles, ela deveria manter-se fiel à matriz, como se qualquer desvio da norma constituísse uma afronta à sua pureza original.
A língua, como organismo vivo, quando fora da casa-mãe, não aceita o espartilho de convenções e regras e, por iniciativa de quem a fala, solta-se em desmandos que a levam a escolher caminhos e atalhos, avessos à via única como forma de se expressar. Por força de trocas, empréstimos e saques, ganhou singularidades que em nada desvirtuam o útero onde foi gerada, mesmo quando resulta de uma algaraviada de misturas nem sempre descodificadas ao primeiro ouvir.
Sei bem como são gozados os e/imigrantes, por, nas suas viagens de visita ou de regresso ao chão, se apoiarem nos bordões das línguas dos países onde vivem ou já viveram; conheço as piadas que, a propósito ou despropósito, se fazem; conheço gente contida, a guardar palavras dentro de si, com receio de não se exprimirem corretamente ou causarem algum mal-entendido.
Língua de Camões é como chamamos à nossa, o poeta que deu também nome ao dia que hoje festejamos. Deixemos, então, que a língua portuguesa seja como ele: solta, rebelde, insubmissa, transgressora, rufia, para que, como prémio, ganhe o reconhecimento do mundo em vez da miserável tença circunscrita ao espaço do Paço. Que salte do Paço para as hospedarias e tabernas, onde se emborca a coragem dos que hão de levar as naus a outros portos. Aportada virgem, há de voltar vestida de outras roupagens, urdidas no tear das conversas entre as muitas e mais variadas gentes.
Recentemente, fiz duas missões de voluntariado na Guiné-Bissau e, pela primeira vez, fui diariamente confrontada com falantes de crioulo de base portuguesa, que a maioria utiliza como língua materna. Ao ouvi-los falar, identificava uma palavra aqui e outra ali. No entanto, ao ser confrontada com a escrita das mesmas frases, era-me mais fácil descodificar a mensagem, concluindo que algumas dessas expressões haviam incorporado palavras arcaicas portuguesas. Já não as usamos, mas ficaram no substrato dos crioulos que se formaram. Embalados no colo das mães, são as primeiras vozes que lhes chegam e é nelas que riem, choram, amam e sonham. Estes são todos verbos que traduzem emoções e sentimentos, que, por mais que o neguemos, só atingem a expressão máxima quando reproduzem os sons primeiros da audição e da fala, forjados na gramática dos afetos.
Celebrar Portugal é, por isso, festejar também as palavras: as eruditas que Camões resgatou e todas as outras nascidas da libertinagem da língua que, ao renegar o celibato, se envolveu com quantos encontrou no caminho, gerando uma nova prole “na alma de um fado/ navegante/um fado/de quem vai/sempre adiante”, como nos canta Dulce Pontes.
Aida Batista/MS
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