O armário de rede
Não amamos apenas memórias felizes. Em um certo momento da vida, percebe-se que amamos apenas as memórias. Natalia Ginzburg
Eram três lanços da escada das traseiras da casa até se chegar à porta da cozinha, porque a que dava acesso direto à sala de estar fora traçada de forma discreta, de modo a que ninguém soubesse quem entrava ou saía.
À entrada da cozinha, havia um móvel suspenso na parede. Fazíamos as refeições diárias sempre na cozinha e havia que libertar espaço para podermos circular à vontade. Só em dia de visitas se ia para a sala e, nessas alturas, de todos os filhos eu era a única que tinha já obtido o estatuto de poder partilhar uma refeição com os convidados. Um dos privilégios de que eu tirava proveito com alguma satisfação e orgulho.
O armário era constituído por três portas, mas um pormenor o destacava de todos os outros: a porta do meio em rede, feita numa malha fina e apertada. Era nesta divisória que se guardavam os restos de comida, porque estavam a salvo da gulodice das moscas e de outros insetos. Algumas vezes, não se tratava propriamente de sobras, mas de certos alimentos que minha mãe preparava com o propósito de serem consumidos mais tarde, porque a passagem do tempo os tornava mais saborosos. Estou a pensar, por exemplo, nos vulgarmente designados joaquinzinhos, depois de mergulhados uma noite em molho de escabeche! Aquela receita antiga em que a cebola, o alho, o louro e o vinagre tinham tido tempo de emprestar ao peixe um sabor único.
Criada à beira-mar, e numa terra farta de peixe graúdo de grande qualidade, os carapaus não faziam parte com regularidade da nossa ementa diária. Como família numerosa que éramos, seria necessária uma grande quantidade destes exemplares para satisfazer o apetite de crianças e jovens em fase de crescimento. Minha mãe, que nunca tivera acesso a nenhum curso de economia doméstica, mas fora dotada de um forte sentido prático para gerir quotidianos, cedo aprendeu que mais valia optar por peixes que, depois de limpos e escamados, proporcionassem belas postas de lombo, que corresponderiam à dose perfeita por pessoa em cada refeição.
Em dia de peixe frito, já sabíamos que reservava algumas postas para as destinar ao célebre molho de escabeche, ficando de um dia para o outro guardadas no suspenso armário de parede. No dia seguinte, enquanto tomávamos o nosso pequeno-almoço constituído de uma chávena de café com leite acompanhada de um papo-seco com manteiga ou marmelada, vimo-la muitas vezes abrir a porta do móvel e de lá tirar o prato, onde o peixe ficara uma noite mergulhado naquele molho avinagrado. Sentava-se à mesa, pegava numa das postas, retirava-lhe a pele e a espinha do meio e colocava-a no interior de uma carcaça, deliciando-se a comê-la com a sua caneca de café feito à moda antiga.
Durante os anos da minha curta adolescência, achava horrível que minha mãe pudesse tirar prazer de uma refeição tão inusitada como aquela – peixe frito ao pequeno-almoço – que, aos meus olhos, se revelava desprovida de qualquer sentido de oportunidade. Na primeira refeição do dia, pensava eu, só as torradas ou o pão recheado de manteiga ou marmelada deveriam ser consentidos. Uma vez por outra, e quando as galinhas poedeiras exageravam na produção, tínhamos direito a um miminho extra – um ovo estrelado.
Os anos passam, amadurecemos e aprendemos a olhar para certas práticas do passado de uma outra forma, numa tentativa falhada de as reabilitar. Já o fiz, mas não resultou. Preparei a receita com os mesmos ingredientes, mas o sabor nunca mais foi o mesmo, porque na marinada do molho de escabeche faltará sempre a mão de minha mãe a dosear os condimentos guardados na porta de rede da minha memória!
Aida Batista/MS
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