Aida Batista

Nem as moscas mudam

A terra está cheia de violência por causa dos homens. Génesis 6,13

No noticiário da manhã da RTP 1, temos diariamente duas rubricas: “Bom Português” (em que, na rua, são entrevistadas pessoas sobre algumas das armadilhas que a língua portuguesa diariamente nos coloca) e “A Mosca”, um “cartoon” desenhado por Luís Afonso, em que um diálogo entre duas moscas se debruça sobre questões da atualidade, caricaturando-as sob a forma de humor ou da ironia que nos interpela. Na do dia 24 do corrente mês, pudemos assistir ao seguinte diálogo:

Nem as moscas mudam-portugal-mileniostadium
Credits: DR

– Foi a tribunal um homem acusado de arrastar a mulher pelo pescoço na rua.

– Isso aconteceu mesmo?

– O tribunal deu a agressão como provada.

– E então?

– O homem foi absolvido.

– Espera lá! O tribunal deu a acusação como provada e o réu foi absolvido?

– A juíza considerou que o sucedido não teve “crueldade, insensibilidade e desprezo” e que a conduta do arguido não integra o conceito de maus-tratos.

– Mas arrastou a mulher pelo pescoço!

– Ora, mas se calhar não apertou muito!

Vamos, então, aos factos: um homem de 37 anos agrediu a companheira, levantou-a do chão e, para a obrigar a entrar no carro, arrastou-a pelo pescoço. Uma patrulha da GNR, que casualmente ia a passar, assistiu a tudo e prendeu-o. Este, além de oferecer resistência, proferiu sérias ameaças contra os elementos da GNR.

Ao ser levado a tribunal, a juíza Isabel Pereira Neto considerou não haver crueldade suficiente para o ato ser considerado crime de violência doméstica, apesar deste homem já ter antecedentes. Em novembro de 2019, a GNR fora chamada a casa da vítima durante a noite, porque, debaixo de uma chuva intensa, se encontrava junto da sua habitação e precisava de proteção para ir a casa buscar alguns objetos pessoais e dos filhos, a fim de se dirigir a casa de familiares em busca de abrigo.

Num outro caso, que também levantou grande polémica, tivemos um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, redigido por um juiz desembargador, de seu nome Neto Moura, mas assinado também pela juíza Maria Luísa Arantes, que justifica a pena suspensa atribuída a um homem que agredira violentamente a mulher com uma moca de pregos, com base (pasme-se!) na jurisprudência da Bíblia. Ou seja que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem” porque há sociedades “em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte” e que “na Bíblia podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”. Não satisfeitos com a invocação genesíaca, ainda desenterraram o Código penal de 1886 que “punia com uma pena pouco mais do que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”.

Segundo o mesmo acórdão, e continuo a citar: “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou (são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras), e por isso [a sociedade] vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”.

Entre 2014 e 2019, foi assassinada mais do que uma mulher por mês em contexto de violência doméstica. Perante decisões judiciais como as que acabámos de ler, não espanta o clima de impunidade em que alguns homens se movimentam. Mas, o que mais me espanta é que tanto uma decisão como outra (quantas outras haverá?), foram assinadas por juízas, mulheres que, juridicamente, dão o seu aval a este tipo de crimes.

Perdoem-me o vernáculo, mas todos conhecem o provérbio: “A merda é sempre a mesma, só as moscas é que mudam”. Pois estas moscas, além de não terem mudado, continuam a pensar como se pensava há mais de dois mil anos.

Que tal, levarem com uma moca de pregos na cabeça? Talvez acordem para a atualidade.

As Quatro Estações-portugal-mileniostadium

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER