Aida Batista

Não ter cromos para troca

“Sou um convalescente do momento, moro no rés-do-chão do pensamento e ver passar a vida faz-me tédio.” - Fernando Pessoa

Há quem diga que quando dois portugueses se juntam, em menos de nada estão a falar de comida (esta afirmação é igualmente válida para as portuguesas, aqui ficando a explicação para não ter de recorrer constantemente à barra seguida dos artigos femininos). Assim  é, e também dou por mim a trocar receitas, a ensinar pequenos truques que otimizam os resultados, a dar dicas sobre a utilização de um ou outro produto culinário, a sugerir ementas, a indicar restaurantes especialistas em determinados pratos ou a opinar sobre as especialidades de certas regiões.

Não ter cromos para troca
Créditos: DR.

Um país que, apesar de não ser banhado pelo Mar Mediterrâneo, integra o grupo dos que pertencem à Dieta Mediterrânica, Património Imaterial da Humanidade, só tem razões para se orgulhar da sua gastronomia, tão elogiada pelos que nos visitam. Será caso para dizer que, à falta de alimento do espírito, de que tantas vezes somos acusados, nos empanturramos do outro.

Há um segundo assunto que enche a boca dos portugueses – as doenças. Sentem-se à mesa de um daqueles cafés de bairro – onde se assiste ao ritual diário dos que se juntam para tomar o pequeno-almoço ou uma bica, cultivando as saudáveis relações de vizinhança -, e apurem os ouvidos. Após os primeiros dois dedos de conversa dos cumprimentos, em que se destacam  os resignados “vai-se andando” ou “que remédio” (ninguém diz que está bem), seguem-se os detalhes dos achaques próprios, e dos de familiares, amigos ou gente conhecida. Perante qualquer queixa, há sempre alguém que tem outra maior.

Lembram-se daquelas cadernetas de cromos que há anos preenchíamos, e que, após cada compra de carteirinhas, nos apressávamos a ir ter com os amigos para podermos fazer trocas? É a este retorno a um passado longínquo que estas conversas me levam: para cada doença há sempre outra para a troca, havendo também aqueles a quem saem cromos repetidos e outros que lamentam faltarem-lhes alguns. Chegam a ir ao médico na esperança de o trazerem, mas saem de lá desiludidos porque este, por entre o emaranhado de sintomas, não lhes descobre o paradeiro. Para quem exibe um estimável catálogo de doenças, ajusta-se a tirada de que “É precisa muita saúde para aguentar tanta doença.”

Este arreigado sentimento genesíaco de que estamos condenados a parir cada dia com dor, e a amassar a vida com o suor do rosto, transforma em pecador todo aquele que, sem queixas, se atreve a acrescentar os juros da alegria ao saldo do pecúlio acumulado de todos os momentos que lhe são dados para desfrutar.

Há dias fui chamada para tomar a primeira dose de vacina contra a Covid 19. A jovem que me ligou indicou-me o dia e a hora, perguntando-me da minha disponibilidade. Depois de lhe ter dado o meu “sim”, em jeito de quem cumpre com todas as formalidades exigidas, previne-me: “Não se esqueça de trazer os seus medicamentos.”

Admito que fiquei confusa. Apesar de seguir atentamente a campanha de vacinação e estar atenta aos procedimentos, pensei que me tivesse escapado alguma coisa – uma qualquer preparação prévia -, e perguntei: “Que medicamentos”?

– Aqueles que a senhora toma.

– Mas eu não tomo medicamentos nenhuns.

– Não toma nada? Tem que me dar a receita!

Aqui está o retrato da convicção generalizada de que uma pessoa da minha idade tem de viver com medicação diária. Pela reação, e segundo os nossos parâmetros, a minha situação foge aos estereótipos consolidados.

Se tivesse de dar a minha receita, usaria um “slogan” há muitos anos repetido: “É fácil, é barata e dá milhões” de momentos muito felizes, que servem de troca com quem estiver a preencher a mesma caderneta.

As Quatro Estações-portugal-mileniostadium

 

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