Não está tudo bem
Estamos a 19 de março, Dia do Pai, e continuo a celebrar-te na tua ausência. Por mais que se diga que não há coincidências, não sei explicar o acaso que me fez deparar estes dias com as cartas que me escreveste quando, em 1989, estava a trabalhar na Finlândia. Recordo o imenso orgulho que sentiste, e como o contavas a toda a gente, quando soubeste que eu iria ser Leitora de Português no Estrangeiro. A mãe, que não tinha ideia de onde ficava a Finlândia, disse, “Vais para tão longe, minha filha”, como se o início do nome do país “Fin” me atirasse para o fim do mundo. Mal sabíamos nós (tu e eu) que, em breve, iria ela partir para bem mais longe, numa viagem sem retorno. Na altura, e porque a minha preocupação maior eras tu, adiei o luto e, como quase sempre na minha vida, tive de disfarçar a dor no mais íntimo de mim.
Para que não ficasses sozinho – pelo menos até ao dia da minha partida -, trouxe-te para minha casa, esquecendo que nenhuma companhia poderia ocupar o vazio e a falta que te fazia. Estavas rodeado de nós (filha, genro e teus netos), mas, como um bicho de conta, enrolavas-te no teu mundo, onde guardavas as memórias de uma vida a dois. De já não teres com quem caminhar de mão dada; das idas juntos à horta, onde viam crescer aquilo que chegava e sobrava para sustento de um casal sozinho em casa; dos serões à lareira, onde rezavam o terço e pediam proteção para os filhos dispersos pelo país e lá fora; das tardes soalheiras à porta de casa a olharem para as folhas e rebentos da latada que terias de desparrar para que os cachos não ficassem desprovidos da luz e do calor do sol; de apreciares os vasos de flores que ela dispunha em alas, assim que se entrava ao portão, como cartão de visita de florista encartada; e de como às vezes a censuravas pelos torrões com raízes que ela trazia de outros jardins: “Ó Celeste, já tens tantas”!
Foi dessas “tantas” e das novas que depois rebentaram, que passaste a colher as que, em cada visita, lhe punhas na campa para que ela sentisse uma parte de vós a manter-se viva para sempre.
Releio hoje as tuas cartas, como esta datada de novembro, seis meses depois da sua partida, e comovo-me com os teus desabafos: “Ando como um pássaro que não tem ninho certo. Todos me têm tratado muito bem, mas a minha mágoa não me larga. Noite e dia não me sai do pensamento. Há dias sonhei que a tua mãe estava deitada com a cabeça no meu ombro e a dizer-me: Manuel não andes triste eu estou bem. Acordei tranquilo e alegre, é muito raro o dia em que não sonho com ela. Sinto muito a falta dela, à medida que o tempo passa parece pior, pois no princípio parecia um sonho e agora é que sei que é verdade. (…) Aida, tem paciência mas a gente fala do que nos vai no coração. (…) Não te preocupes comigo, pois tudo vai correndo com a ajuda do Senhor, só com a sua força é que eu me sinto mais forte”.
Terminavas depois com a tua bênção – “Um grande abraço do teu pai amigo, que todos os dias reza por ti, que Deus te abençoe” -, e foi à fé que te agarraste para aceitares a perda como um desígnio do Senhor. Por isso, confessavas que Ele te tinha sujeitado a uma prova tão grande para poderes expiar os teus pecados.
Terminado o limite da expiação, foi a tua vez de ir para junto dela. Hoje, dia em que especialmente te lembro, sonho que estão juntos, com a cabeça no ombro um do outro, para me dizerem: “Não estejas triste, nós estamos bem”.
Por cá, infelizmente, não está tudo bem.
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