Aida Batista

Mergulhança no tempo

É esta a imagem que guardo da Madeira quando, aos onze anos, fiz uma viagem com meu pai, de Angola para a Metrópole – onde se encontravam já minha mãe e os meus irmãos mais novos -,  e o navio ancorou na baía do Funchal. Estes jovens de origem humilde, a quem era atribuído o nome de “garotos do calhau”, circundavam os navios em pequenos botes e, treinados na arte da “mergulhança”, apanhavam as moedas que os turistas lançavam ao mar. Não recordo quanto tempo o nosso barco lá esteve a reabastecer-se, mas sei que passei muitas horas apoiada na amurada do navio a maravilhar-me com a acrobacia dos jovens que, pescando moedas à mão, faziam daquela atividade o ganha-pão das suas famílias. De tão praticada, chegou a estar sujeita a legislação que a regulamentou, no início da década de 50.

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Crédito: DR.

Décadas depois, e na companhia dos meus filhos e netos, regressei à “Pérola do Atlântico”, como a ilha é designada nos roteiros turísticos, para uma estadia de uma semana de férias. Gonçalo Cadilhe, que, nos seus inúmeros textos sobre viagens, nos tem dado a conhecer os mais paradisíacos recantos do mundo, chama-lhe “O lugar do Assombro”, tendo recentemente escrito: “Sentimo-nos pequenos, insignificantes, privilegiados por estarmos vivos e retomarmos o caminho à espera da próxima vertigem felizes e atordoados de tanto assombro. Que é um sentimento que raramente vem à superfície nos dias de hoje. Ainda bem, atordoa mais quando aparece.”

Tal como ele, é ainda atordoada que escrevo, recém-chegada da viagem. Percorremos, tanto quanto os oito dias de estadia permitiam, o litoral escarpado, e banhámo-nos nas águas quentes das piscinas naturais e das praias anichadas em pequenas baías que a toponímia convida a visitar. Estas, tanto podem ser de calhaus rolados, como de areia artificialmente transportada que, apesar de não rivalizar com a nossa, nos devolve a sensação de pisar o areal, por muito diminuto que seja.

Imbuídos da energia da poncha, servida e consumida em cafés ou bares improvisados por toda a ilha, seguimos veredas e levadas para, no final, nos surpreendermos com um olhar de espanto perante montanhas nascidas dos vales profundos. Algumas vezes, a camada de nuvens era enganadora porque, depois de as cruzarmos, tínhamos um sol radioso a brindar-nos com paisagens de suster a respiração. Ouvindo apenas o silêncio da altitude, ora coberta de vegetação endógena, ora feita de longos espigões negros basálticos a testemunhar a origem vulcânica da ilha, a paisagem exige demorada e atenta contemplação face à mais antiga escultora que conhecemos – a natureza! Assim partilhamos do assombro de Gonçalo Cadilhe, todo ele ligado ao mar e à terra que, pelas suas caraterísticas únicas, nos deslumbram a cada instante.

É óbvio que também não fugimos das estereotipadas experiências oferecidas aos turistas, como: subir o teleférico do Funchal, para depois, velozmente, descer nos tradicionais cestos de vime, empurrados pela perícia do par de homens “encartados”, que têm os travões nos pés,  prontos para serem postos à prova de cada vez que havia necessidade de controlar a velocidade excessiva; comer as famosas espetadas em restaurantes que, fora do roteiro turístico, são de visita obrigatória, pela singular experiência de onde menos se espera.

Este salto de décadas no tempo permitiu-me a “mergulhança” numa ilha equipada das mais modernas estruturas, mas que mantém muitas das tradições ancestrais. Se a escrita é  escrever contra a morte, como confessa Alexandra Lucas Coelho, fica o meu registo para que as imagens (as antigas e as atuais), que guardo da Madeira, se mantenham para memória dos que me acompanharam, escapando assim à morte por esquecimento.

Aida Batista/MS

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