Memórias de agosto
A minha fronteira é a língua;
o meu exílio é o meu sotaque.Velibor Čolić, escritor bósnio
Vivi num espaço e num tempo em que a condição de emigrante nunca se me pôs. Com um ano e meio de idade fui levada para Angola e aí cresci na convicção de aquela era a minha terra. Nunca soube dizer outra. As pessoas que me rodeavam, ou lá tinham nascido ou haviam sido levadas como eu. Não nos questionávamos sobre as raízes de cada um, porque a relação de pertença ao lugar nunca se colocara.
As minhas ligações familiares circunscreviam-se a um universo muito restrito, constituído apenas pelo meu núcleo familiar (pais e irmãos), os meus avós maternos e tios maternos e paternos que meu pai se encarregara de aliciar com carta de chamada. Viver naquele chão era para mim um dado adquirido. Só quando as circunstâncias de uma descolonização precipitada me atiraram para um regresso ao desconhecido chão matricial, em pleno mês de agosto, tomei consciência de que Portugal se enchia de linguajares híbridos, provenientes maioritariamente de países da Europa, onde a França, Suíça e Alemanha, tinham atingido foros de segunda casa.
Nessa altura, as viagens faziam-se de carro, porque à chegada se queria impressionar com as novidades da estranja e, no regresso, levar o maior número possível dos produtos que alimentavam o mercado da saudade. As estradas enchiam-se de matrículas estrangeiras que passaram a ser um jogo para os meus filhos, durante as longas viagens que fazíamos até à aldeia dos meus pais. E dizia-lhes sempre “a terra dos avós” porque, tendo de lá saído numa idade sem memórias, nunca conseguir dizer que era também a minha terra. O jogo consistia em um deles contar o número de matrículas estrangeiras e o outro as nacionais. À medida que o nosso trajeto se aproximava cada vez mais do norte beirão retalhado em minifúndios, maior era o número de carros dos emigrantes. Assim, a primeira aula sobre geografia humana foi dada ao vivo na estrada – o Norte dera mais braços à emigração do que o resto do país.
Nesta contagem para passar o tempo – as autoestradas e as IPs aguardavam por um futuro adiado – umas vezes ganhava um, outras, o outro. Por isso, era necessário alternar a vez para que um deles não fosse sempre o vencedor.
Foi com este jogo inocente, quando não havia telemóvel nem Ipad para entreter crianças, que o mês de agosto nos entrou portas adentro, dando-nos a dimensão da realidade migratória de Portugal Continental.
Muitas décadas se passaram sobre estas memórias, mas o espírito do nosso querido mês de agosto mantém-se intacto. Continua a ser aquele em que as nossas aves migratórias regressam ao ninho primeiro, mesmo que muitos deles nem sequer cá tenham nascido. A estes move-os as raízes dos pais e avós que, com o seu saudosismo militante, lhes ditaram uma outra memória. Foram eles que lhes transmitiram apetência por um passado que lhes chegou por via da oralidade, da música, da gastronomia e de tantas outras tradições mantidas fora de portas.
São menos os que ainda insistem em viajar de carro e os alugados já não denunciam a origem de quem neles circula. As estradas também deixaram de ser répteis sinuosos a serpentear pela paisagem, dando lugar às grandes vias de asfalto que atravessam o país de Norte a Sul. As áreas de serviço são agora testemunhas da babel de línguas que as percorrem e onde se cruzam destinos outrora movidos pelo motor da fome e da pobreza.
No nosso imaginário, e pelas suas caraterísticas, agosto continuará a ser sempre o nosso “querido mês de agosto”: das romarias, dos arraiais, dos encontros e reencontros, em suma, do regresso a casa, que tanto pode ser mote para as piadas do nosso anedotário, como tema para a literatura, o cinema ou o teatro. Assim o saibamos fixar no tempo!
Aida Batista/MS
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