“Little Portugal” – um país por conhecer
Assim que comecei a dar aulas em Toronto, fui-me familiarizando com a variedade dos alunos, que nada tinham a ver com a minha experiência escandinava em que um estrangeiro era sempre uma exceção. Os rostos muito alvos e de olhos claros, foram substituídos por uma paleta de tons, com adereços a condizer, que tanto podiam ir das longas túnicas aos saris, como das cabeças cobertas de véus, turbantes ou kipás.
Foi nesta Babel de línguas, etnias, crenças, expressas num conjunto de culturas a conviverem de forma harmoniosa e pacífica, que me vi rodeada de mundos que chegaram até mim sem nunca os ter visitado. Entre eles, estava também a comunidade portuguesa concentrada no “Little Portugal” – um “País por conhecer, por escrever, por ler…”, como diria O’Neill -, onde era possível circular sem precisar de usar uma única palavra em inglês.

Nunca se nasce nem se vive numa só pátria, sempre que ela se inventa em todos os lugares para onde levamos as memórias daquilo que fomos e somos. E o “Little Portugal” agigantava-se de cada vez que eu me cruzava com vozes anónimas que, pelo sotaque, emitiam certidões de nascimento de todas as regiões de Portugal Continental e Ilhas. Virei do avesso um “slogan” muito em voga na época “Vá para fora, cá dentro”, porque ali seria “Vá para dentro, lá fora!”
Passei a frequentar as sedes das várias casas e clubes, e a participar nos seus diversos eventos e semanas culturais, umas vezes como assistente, outras de forma mais ativa a proferir comunicações, a fazer lançamentos de livros, a promover autores, para que o meu trabalho saísse das salas da universidade.
Foi dentro do associativismo que comecei a compreender melhor a emigração. Dar um salto para o desconhecido nunca é fácil quando, na maior parte das vezes, nos esperam muitos dias de solidão e saudade. As partidas fazem-se em nome de futuros de sucesso, mas a língua que as traduzem é declinada em ausências, renúncias e, quantas vezes, num silêncio servil perante a dignidade espezinhada, que poderia levar anos a levantar-se consoante a quantidade de “dolitas” amealhadas.
Nestes encontros pelos corredores da diáspora, fui conhecendo gente que, ao relatar-me as suas histórias de vida, era um manual escancarado de aulas práticas que desconstruía quase tudo quanto aprendera nos in-fólios dos compêndios. De como nos podemos manter estrangeiros nas vivências, nas partilhas, nos equilíbrios precários das relações de pertença indefinidas e tantas vezes adiadas.
Não tinha ainda completado um ano sobre a minha estreia numa comunidade longe da Pátria, quando a notícia, de tão inesperada, nos surpreendeu a todos. Não recordo que motivos me levaram nesse dia à zona portuguesa, mas o que vi e ouvi apanhou-me desprevenida: fotografias de Amália em muitas montras e, por todo o lado, a sua voz a encher de fados a Dundas Street. Era o país distante a chorar a fadista, numa afirmação de portugalidade adormecida, que desperta assim que um dos que representa a alma portuguesa adormece para sempre.
A emoção sentida impeliu-me a satisfazer um pedido que há muito me haviam feito – colaborar num jornal português. Cheguei a casa, escrevi o texto com que iniciei, e até hoje mantenho, a colaboração no jornal “Milénio”. Amália, naquele dia, foi nome de crónica, da minha primeira crónica!
Uma missão inicialmente prevista para seis anos, terminou ao fim de cinco, mas o laboratório humano, em que me movi, fizeram-me entender muito melhor as razões que levam a “ largar amarras” do chão a que se pertence.
Com os nós dos dias, meses e anos ali vividos urdi a trama de experiências com que voltei a casa. Diferente, porque passou a haver um antes e um depois da minha missão em Toronto.
Redes Sociais - Comentários