Aida Batista

Jantar de domingar

 

Photo: @copyright

Dentro das velhas casas/cabe o espanto/ o odor materno/ o aroma das laranjas/ só as paredes são dos mortos […] – Ivo Machado

À medida que a idade avança, vamos sentindo necessidade de nos desfazermos de tralha que consideramos inútil. Tudo tocamos com o olhar afetivo do passado, hesitamos um pouco, mas o pragmatismo fala mais alto e aquele adeus adiado cumpre-se nas horas de menor hesitação.

Por causa de algumas arrumações que recentemente fiz, recordei alguns dos rituais de domingo da minha infância e juventude. Era um tempo em que certas expressões ganhavam um sentido especial, como “vestir roupa de domingar” ou “usar o fato de ir ver o Senhor”. 

 Ao domingo e dias santos de guarda (esta última também já não se usa), havia uma prática obrigatória: “Ouvir missa inteira e abster-se de trabalhos servis”. Só na década de 70 surgiram uns pequenos desvios às regras canónicas, tendo sido autorizado que, em determinadas circunstâncias e por impedimento devidamente comprovado, a missa vespertina de sábado permitisse cumprir o preceito sem ficar em pecado.

Minha mãe tirava do guarda-fatos (a palavra roupeiro não era utilizada) do quarto dela os fatos dos meus irmãos que, ao domingo, se vestiam a rigor. A nós, raparigas, era-nos dada a liberdade de usarmos roupa bem mais leve, condizente com a temperatura dos trópicos que habitávamos. Íamos todos juntos, como numa romaria, cumprir o mandamento do Senhor à igreja de Nossa Senhora de Fátima, paróquia a que pertencíamos.

Não havia muitas famílias numerosas, pelo que a nossa entrada na igreja fazia voltar algumas cabeças que nos viam ocupar um banco corrido. Para o meu pai, missa inteira não era apenas o tempo que durava a celebração, mas o cumprimento de todos os ritos que a mesma abarcava. E ai de nós que não comungássemos! Ficava-lhe uma ligeira desconfiança de que estávamos em pecado mortal, pelo que o melhor era não dar ocasião a que a dúvida se instalasse. Cumprido o ritual, era o regresso a casa para o almoço e a curta sesta que o meu pai diariamente praticava com a mesma devoção com que rezávamos o terço à noite, depois do jantar. 

Da parte da tarde, saíamos novamente e cumpríamos itinerários semelhantes aos de muitas outras famílias, cruzando-nos em acenos de cortesia. Percorríamos as artérias que rasgavam a cidade em avenidas retilíneas que, aqui e ali, se abriam para jardins, onde muitas vezes nos quedávamos em pausas para brincadeiras. Como no hemisfério Sul a noite chega mais cedo, o anunciar do crepúsculo ditava o regresso a casa.

A ementa do jantar de domingo era um ritual tão certeiro quanto a ida à missa – pataniscas de bacalhau! Chegados a casa, minha mãe escorria as postas que de véspera deixara de molho, cortava-as em filetes finos que passava por uma polme, para depois os fritar em azeite bem quente. Após o prato da sopa, que, na nossa casa sempre foi entrada obrigatória de todas as refeições, comíamos sandes de pataniscas de bacalhau. Mantém-se este meu gosto por pataniscas de bacalhau, se bem que sejam agora feitas numa versão ligeiramente diferente da receita de minha mãe, que usava filetes inteiros em vez de os desfiar em lascas. 

Numa das minhas idas a Toronto, recebi da parte de um casal amigo um convite para jantar. Era domingo e, sem que eles soubessem destas minhas memórias, a ementa do jantar foi pataniscas de bacalhau. Serviram-nas acompanhadas de arroz de feijão e não entaladas num papo-seco como o “jantar de domingar” na nossa casa. 

Eles nunca se aperceberam da emoção que senti quando as vi na mesa. Também nunca lhes confessei que, naquela refeição, eu não estava apenas com eles. Para a mesa onde nos encontrávamos, a minha memória convocou toda a família e, juntos, celebrámos mais um jantar de domingar.

Aida Batista/MS

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER