Intervalo entre divindades
Também temos saudade do que não existiu, e dói bastante. - Carlos Drummond de Andrade
O edifício do Colégio de Nossa Senhora da Conceição, onde fui educada da 1ª Classe até ao 5º Ano (hoje 9º Ano), situava-se no coração da cidade de Benguela e era composto por três alas em forma de U com base reta. No corpo central, situava-se a capela, a que se chegava depois de se passar o espaçoso átrio de entrada e atravessar o corredor onde, de cada lado, se alinhavam as salas de aulas. À entrada da capela, na parede do lado direito, encontrava-se afixado, bem acima do nível do chão, um móvel, cujo interior estava organizado com separadores de placas finas de madeira, em forma de quadrícula, onde cada aluna interna guardava o seu véu. Na década de 60, as crianças e jovens do sexo feminino e as mulheres não podiam entrar, nas capelas ou nas igrejas, de cabeça descoberta.
As alunas externas, como era o meu caso, tinham de levar o véu de casa. Se, porventura, nos esquecêssemos dele, ficávamos de pé ao fundo da capela e, após o ritual das orações, cumpríamos o castigo de escrever 50, 100 ou mais vezes (conforme o grau de reincidência) a frase: “Devo sempre trazer o véu para o colégio”.
Como iniciei a minha escolaridade aos seis anos, dado que perfazia os sete em dezembro, depressa intuí o conceito de espaço sagrado que muito cedo se entranhou em mim. Esse e a noção de sacrifício. Fazer sacrifícios, diziam as freiras, além de atenuar o castigo divino sobre os pecados cometidos, purificava-nos aos olhos de Deus. Entre os vários que praticávamos, para além dos jejuns, abstinências e outras privações, recordo o de, na hora do terço na capela, rezar as dez Avé-marias e o Pai-nosso que faziam parte de um mistério, com dois lápis facetados sob os joelhos, ou, como alternativa, os braços em cruz.
O yoga entrou muito tarde na minha vida (de há três anos para cá), mas dói-me não ter começado antes. No entanto, entranhou-se-me de tal maneira, que me tornei numa dependente quase diária desta prática. Entre os vários exercícios executados, alguns, devido à similaridade da postura, tomam a designação de “posição de guerreiro”. Uma delas consiste em, de pé, abrir as pernas de forma paralela ao tapete, colocando o pé direito na horizontal, enquanto o esquerdo dobra ligeiramente para dentro, e os braços esticados na horizontal ao nível dos ombros. Com o tronco na vertical, num equilíbrio vitruviano, fletimos o joelho em ângulo reto para o lado do pé direito, assim nos mantendo durante algum tempo nessa posição. É importante referir que estes movimentos são praticados de forma simétrica, ou seja, exercitando uma vez um lado do corpo e, de seguida, o outro.
À medida que vamos treinando e ganhando maior segurança e flexibilidade, sentimos que controlamos melhor a dor provocada por certos estiramentos e conseguimos permanecer mais tempo em determinadas posturas, como a que acabei de descrever.
Entre a primeira memória e o meu presente, há um intervalo temporal de décadas, tendo a primeira marcado a minha infância e juventude, e o presente a minha senioridade. Mas foi o último que me fez viajar no tempo porque, de cada vez que mais tempo me aguento na postura de guerreiro, mais me sinto tentada a rezar um dos cinco mistérios do terço, para aquilatar da minha resistência entre estes dois tempos. E concluo que catolicismo, budismo ou hinduísmo, apesar de representarem culturas que partem de filosofias e estilos de vida diferentes, se tocam no que ao controlo da dor diz respeito, seja qual for a divindade – Cristo ou Shiva – em nome de quem o sacrifício é oferecido.
Redes Sociais - Comentários