Entre a realidade e a memória
“(…) há séculos cada um diz na sua línguaos outros eus que nos precederamos que fomos e somos e seremos em outros.” – Juan Vicente Piqueras, poeta espanhol
Uma vez por outra, há ainda quem, à revelia dos meus pedidos, insista em continuar a mandar-me mensagens em PowerPoint, com versos de poemas, que se soltam do interior de imagens que igualmente se movem ao ritmo da música que lhes serve de suporte sonoro. Partem do princípio de que somos todos uns analfabetos funcionais e já ninguém sabe ler apenas palavras. Há outras pejadas de princípios de vida que nos parecem todas retiradas de mais um livro de entreajuda ou réplicas de «O Segredo».
Não sei se é por pertencer a uma determinada faixa etária que ultimamente recebo, com alguma regularidade, mensagens a exaltar a alegria de envelhecer. Por entre imagens muito convincentes (todas elas sempre de mulheres) e uma música condizente, aparecem-me frases do género:
«Aos 60 olha-se e relembram-se todas as pessoas que nem sequer já se podem ver ao espelho. Sai e conquista o mundo. Aos 70 olha-se e vê sabedoria, alegria e habilidade. Sai e aproveita a vida o melhor que pode. Aos 80 nem se preocupa por se ver ao espelho. Simplesmente põe um chapéu encarnado pelo mundo fora e sai a divertir-se».
Se à inutilidade do conteúdo, juntarmos as imprecisões de natureza linguística, rapidamente concluímos que isto é puro lixo. De uma delas retirei esta pérola: “A velhice é um presente. Eu sou agora, provavelmente pela primeira vez na vida, a pessoa que sempre quis ser. Não trocaria meus amigos surpreendentes, minha vida maravilhosa, e o carinho da minha família por menos um cabelo branco, uma barriga mais lisa ou um bumbum mais durinho”.
Continua no mesmo registo a sequência que enaltece a experiência de vida, mas, acima de tudo, “a grande liberdade que vem com o envelhecimento”. O maravilhamento é tal que termina: “Eu gosto de ser velha. Libertei-me!”
A forma como tudo isto é feito – emprestando um ar muito belo, fresco e romântico à decadência física -, leva a que muitas mulheres respondam da mesma forma positiva. Ou seja: enaltecendo o seu próprio envelhecimento, e dando-se mesmo ao trabalho de partilharem o antes e o depois das suas vidas, como se estas pudessem ser fatiadas em décadas ou balizadas por datas. Já recebi respostas a confirmarem que, tal como as imagens das mulheres do PowerPoint, também elas se sentiam plenas de beleza e realização pessoal. Que olhavam para trás e se admiravam de como tinham feito tanta coisa! Que se olhavam ao espelho e viam que tinham vivido cada uma das rugas que este lhes devolvia.
Perante respostas tão otimistas, apeteceu-me escrever a todas e dizer-lhes o quão enganadas estavam, porque todas aquelas mulheres que se permitiam fazer afirmações do género das que lemos, essas, não tinham ainda sentido o anoitecer da vida.
Envelhecer é outra coisa completamente diferente. Todos os que, por força das circunstâncias, têm lidado de perto com familiares ou amigos que já entraram nessa fase, estão em condições de dizer o que é envelhecer. E para o descrever, asseguro-vos, não existem imagens cor-de-rosa ou lugares-comuns que sirvam apenas para iludir o que nos espera.
Estejamos atentos, observemos bem o que se passa à vossa volta e depressa concluiremos que o verdadeiro envelhecimento é aquele que cria dependências e sujeições ao ponto de ser posta em causa a dignidade de estar vivo. Tudo o resto é apenas e só amadurecer!
Por isso, e também falo por mim, o que por enquanto acontece é que estamos todos ainda a amadurecer. E continuaremos a amadurecer, ano a ano, década a década, até cairmos de podres. Quando estivermos mirrados no chão da solidão, sem forma, sem graça, sem utilidade e espezinhados pela indiferença, isso sim, é envelhecer! E nada tem de glorioso.
Aida Batista/MS
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