Aida Batista

Doze vezes foste mãe

Todos os dias te celebro, mãe, apesar de há muito me teres deixado, mas este domingo é-te totalmente dedicado. E tu serás daquelas que mais merecem ser lembradas porque doze vezes foste mãe – doze, sem que alguma vez tivessem nascido gémeos.  

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Créditos: DR.

Quando revejo o teu quarto, três camas faziam parte do mobiliário: a vossa (tua e do pai), o berço do teu lado esquerdo onde se deitava o bebé de meses e, na parede, ao fundo da tua cama, uma outra cama mais pequena, destinada ao que não era ainda autónomo para ficar sozinho num quarto.

Aproximava-se a data do teu 12º parto, sem que soubéssemos se era menino ou menina, embora nós, as meninas, competíssemos com os rapazes que nos ganhavam em número. Sabíamos apenas que correrias sérios riscos, como os médicos previam. Fora-te diagnosticada uma hérnia umbilical, que te obrigava a um ritual diário assim que o teu ventre começou a aumentar de volume. Ainda deitada, tinhas um pequeno disco de madeira, envolto em algodão para não te magoar, que pressionavas sobre o teu umbigo de forma a ganhar alguma profundidade. Depois, e com ambas as mãos, agarravas na pele envolvente que puxavas de forma a cobrir o disco. Terminada esta operação, prendias tudo bem com uma mão, enquanto a outra colocava o adesivo largo, preparado já sobre o lençol, de maneira a que toda a zona ficasse fechada. 

Só depois te levantavas e continuavas a fazer a tua vida normal, até ao último mês, até ao último dia, até à última hora, que era aquela em que o pai me dizia: “Pega nos teus irmãos, vão dar um passeio à praia e fiquem por lá o tempo que quiserem.” O tempo que quiserem significava voltar antes do pôr-do-sol que, em Benguela, se deitava cedo nas águas da Praia Morena. Ao chegarmos a casa, havia-se já iniciado a troca de lugares: um novo bebé no berço e a mudança do outro para a cama do fundo.  

Da primeira vez, estranhámos! Quando voltou a acontecer, sabíamos chegada a hora da parteira – a tua mãe -, que precisava de fazer tudo longe da curiosidade e dos olhares das crianças. Já sabíamos: dia de praia a meio da semana, sem estarmos de férias, significava a chegada de mais um irmão. Recordando as datas, todos nasceram em meses de temperaturas elevadas; na estação do cacimbo, a mais fria, apenas um que, por coincidência, acabou por nascer em pleno verão, quando vieste de férias a Portugal.

Chegada a vez do teu último parto, já casada e com dois filhos, havia iniciado a minha carreira docente e lecionava Didática A (ensino da Língua) na Escola do Magistério Luís Gomes Sambo de Benguela. Era jovem e tu sabais que eu tinha sonhos. Um deles era conseguir organizar uma visita de estudo com as alunas – uma viagem de ida e volta de barco a Moçambique. Fizemos espetáculos, angariámos fundos, vendemos rifas, sorteámos ofertas e as alunas entregaram-se às mais criativas atividades para conseguirem recolher dinheiro que pagasse as passagens. 

Tudo preparado, a viagem seria em março, exatamente o mês em que esperavas aquele que viria a ser o teu último filho; só depois, e dos perigos a que te sujeitaras, o teu confessor te permitiu o uso de contracetivos, argumentando que havias já cumprido a profecia genesíaca “Crescei e multiplicai-vos”.

Muitos me condenavam por ir viajar quando se jogava a tua vida. Mas tu, que alimentavas certezas como se fosses íntima dos desígnios de Deus, tranquilizaste-me, insistindo:

– Vai, minha filha, vai tranquila, porque vai correr tudo bem.

Demorei-me mais pelas praias por onde andei para, no regresso, te encontrar bem e com um novo bebé no berço. Era menino. Eu perdera, mas a perda maior aconteceu várias décadas depois.

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