Aida Batista

Descoberta à primeira vista

 

(…) não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda.

Clarice Lispector

 

Decorridas mais de três décadas desde a minha primeira missão de Leitora de Português na Universidade de Helsínquia, ao serviço do então ICALP (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa), decidi voltar à Finlândia com a família mais próxima: filhos, nora e netos. Tem sido meu propósito levá-los aos países por onde andei durante a minha carreira profissional no estrangeiro, tendo começado por Toronto, quando passámos o Natal e o Fim do Ano de 2022.

Estando eu tão envolvida na problemática das ligações intergeracionais entre avós e netos, sempre interiorizei que eles entenderiam melhor o meu percurso de vida se tivessem a possibilidade de, na minha companhia, visitarem os espaços a que afetivamente fiquei ligada. Não escondo, portanto, a emoção que senti por poder partilhar com eles as experiências que vivi, num tempo em que as tecnologias ainda ensaiavam os primeiros passos e as ausências pesavam muito mais nos nossos quotidianos, tanto mais que foi neste país que soube que iria ser avó.

Para que tudo fosse ainda mais plausível, era importante que apanhássemos um voo Finnair, como fizemos. Retenho a memória olfativa do que para mim representava entrar num avião daquela companhia, a exalar um intenso odor a endro (erva aromática muito utilizada na confeção das refeições), que me dava logo a sensação de estar num espaço finlandês. Infelizmente, não foi o que aconteceu desta vez porque as companhias aéreas cada vez menos servem refeições quentes, mesmo quando a duração do voo ultrapassa as quatro horas. Por isso, hoje estar num voo Finnair é o mesmo que voar num avião de uma qualquer outra companhia que faça o mesmo percurso. Para outras pessoas, este facto passaria despercebido, mas eu senti as minhas expectativas completamente defraudadas, porque as nossas memórias não são um quarto vazio. As suas paredes estão impregnadas das mais variadas sensações, sendo as olfativas a chave que nos abre a porta para um passado que teimamos em manter intacto no nosso subconsciente.

Aterrámos por volta da meia-noite e dirigimo-nos para a casa que havíamos alugado. Essa, sim, era uma casa tipicamente finlandesa, onde não faltava a sauna, um culto a que os finlandeses se entregam com a mesma devoção que a uma religião. O espaço da sauna tem também um odor caraterístico e inconfundível que só quem lá viveu o consegue identificar.

Seguiram-se os vários passeios numa romaria pelos lugares que, passados tantos anos, continuam a fazer parte de mim e que, revisitados, dão a sensação de me sentir em casa. Este é um sentimento que se reparte por todas as geografias que me marcaram, e onde deixei também as minhas marcas, sempre que falo com quem recorda episódios que fazem parte de vivências comuns.

Por isso, sentirmo-nos em casa é não nos sentirmos estranhos, porque reconhecemos o chão que começámos a percorrer num ritual iniciático, tropeçando em códigos desconhecidos com os quais nos fomos familiarizando. É ouvir sons que dantes achávamos bárbaros, mas que aprendemos a descodificar. É olhar para a variedade da sinalética toponímica e perceber para onde nos leva. É reconhecer nos corpos e rostos, com que nos cruzamos, traços identitários que denunciam a inclusão num grupo, por mais que se diga que somos todos europeus. É identificar atitudes e comportamentos sabendo de antemão que fazem parte do ser e estar de um povo. É constatar o que permanece imutável, mas também notar todas as alterações ao tecido urbano que lhe dão um ar mais cosmopolita.

Em suma, emigrar continua a ser tudo isto: partir e voltar a um chão que, não sendo nosso, o continuamos a amar com a mesma força com que nos entregámos ao jogo da descoberta à primeira vista.

Aida Batista/MS

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