Deixar falar o desejo
Créditos: DR.
As mulheres voam/como anjos: Com as suas asas feitas/de cristal da rocha da memória.
Teresa Horta, Anjos Mulheres
Entrámos em março, o mês em que se celebra o Dia da Mulher.
Gosto de efemérides, por mais que insistam que o Dia da Mulher (ou qualquer outro) é todos os dias ou sempre que nós quisermos, como diria Ary dos Santos em relação ao natal. Quem contesta as celebrações socorre-se amiúde da argumentação de que tudo se resume a atos de puro consumismo. Concedo que também acontece, mas penso que o mais importante de realçar é que assinalar estas datas serve, acima de tudo, para nos lembrar da importância que as mesmas têm. Porque é nesses dias que se organizam seminários, se promovem encontros, se estreiam espetáculos, se fazem exposições, se publicam artigos, ensaios e livros, se premeiam figuras femininas de diferentes áreas e tantas outras iniciativas que chamam a atenção para a desigualdade ainda existente, apesar do longo caminho já percorrido.
E não é por acaso que é precisamente por estarmos em março que já começámos a ouvir esta semana notícias sobre a discrepância entre o valor dos salários dos homens e o das mulheres, cujo fosso aumentou 70% nos últimos 10 anos; que alguns jornais já começaram a dar destaque a estudos sobre esta temática; que até a filatelia desenterra selos que retratam profissões de um tempo em que o trabalho da mulher não era valorizado; o documentário desencanta imagens de quotidianos de mulheres que desempenharam tarefas já extintas, como era o caso das carquejeiras do Porto que até meados do século passado faziam chegar à cidade a carqueja que descarregavam dos barcos acostados às margens do Douro. Mulheres anónimas que percorriam ruas e vielas para que em certas casas se pudesse cozer o pão, acender o lume das cozinhas e das lareiras.
À hora a que escrevo este texto, o noticiário do dia alerta-nos para o facto de estarmos ainda muito longe da máxima “A trabalho igual, salário igual”. Segundo o relatório Global da Disparidade de Género de 2024, do Fórum Económico Mundial, precisamos de mais de sete décadas para que, na Europa, esse fosso deixe de existir. Quase um século, pasme-se, pesem embora todos os avanços já obtidos.
Se nos deixarmos de números e formos para a Literatura, não nos faltam exemplos de como esta tem sido pródiga na produção de textos – sejam eles em prosa ou poesia – que, ao longo do tempo, têm denunciado não só a ausência de direitos a que a mulher tem sido sujeita, mas também a ousadia de terem direito à exaltação das pulsões eróticas que lhes eram negadas.
Maria Teresa Horta, que nos deixou há bem pouco tempo, foi bem a representante daquelas mulheres que se recusaram a ser mais uma operária Luísa, cantada por António Gedeão no poema “Calçada da Carriche”: […] despiu-se à pressa,/desinteressada;/caiu na cama/de uma assentada;/chegou o homem,/viu-a deitada,/serviu-se dela,/não deu por nada[…].
Neta de uma avó sufragista, a coautora de “As Novas Cartas Portuguesas” foi das primeiras mulheres a escrever sobre o desejo. Tal ousadia valeu-lhe o espancamento por três homens que lhe deixaram um recado enquanto a agrediam: “É para aprenderes a não escrever como escreves”.
“A Desobediente”, como lhe chamou Patrícia Reis, não se intimidou perante a ameaça e continuou a escrever, da mesma forma, desafiando todos os cânones. As pancadas no corpo nunca lhe calariam o desejo urdido na liberdade de ser mulher por inteiro, como se revela neste poema. […] E os lençóis desalinhados/como se fosse/de vento! Volto então ao teu/joelho/entreabrindo-te as pernas/Deixando a boca/faminta/seguir o desejo nelas […].
Era assim, Teresa Horta, uma mulher que não se satisfazia apenas com olhar e a ternura, mas quis “a febre dos sentidos e o desejo, o tumulto da paixão a arrebatada”.
Aida Batista/MS
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